Fim de um ciclo: campanha dos “pés no chão”. Por Aylê-Salassié F. Quintão*
Fim de um ciclo: campanha dos “pés no chão”:
Aylê-Salassié F. Quintão*
… A eleição franciscana favorece a campanha dos desocupados. Não há necessidade de grandes quantias para financiar as candidaturas. É “pé no chão”. E ninguém dispõe de mais tempo para encarar o eleitor que o desempregado…
As eleições de outubro vão marcar o fim de um ciclo de trapalhadas na política brasileira, que começou com o Mensalão , passou pela eleição de Dilma , entrou pelo Petrolão, pelo impeachment, teve momentos de alívio na Copa do Mundo de Futebol, nos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, e agora desemboca numa campanha municipal quase franciscana. Tendem a desfigurar os grandes embates ideológicos, a força e a identidade dos partidos, revelando um Brasil local quase ignorado.
Após as eleições, será possível ter um quadro bem mais realista da política brasileira. Sem candidaturas turbinadas por doações ocultas de empresas, sem os monopólios partidários e sem as falsidades do marketing, lideranças legítimas no interior terão oportunidade de contribuir um pouco mais para as próprias comunidades , particularmente aquelas discriminadas dentro dos partidos. Perderam-se muitas vocações.
Mas também… será o fim da linha para a interinidade de Temer .
Cento e quarenta milhões de eleitores de 5.568 municípios terão um cardápio com 495.403 candidatos, sendo 16.816 para prefeito, e 461.76, para as 63 mil vagas nas câmaras de vereadores. Entre os concorrentes existem surpresas do tipo: a filha do traficante Fernandinho Beira Mar, Fernanda Izabel Costa, candidata a vereadora em Duque de Caxias; o filho de Bolsonaro, Flávio Bolsonaro, a prefeito do Rio de Janeiro. Quatro senadores e 79 deputados federais vão disputar prefeituras. Estão no pleito sessenta fichas sujas, líderes sindicais, funcionários públicos, padres, pastores, pregadores, policiais técnicos de futebol, jogadores aposentados, e um número enorme de pessoas que se declararam desempregadas , como o candidato “Betinho”, em Dias D’Ávila, na Bahia, ou o “Alessandro dos Desempregados”, em Aracaju, e um pedreiro da Paraíba que, sem dinheiro, faz campanha retocando a casa dos eleitores. A função de vereador , cargo honorífico no passado, é vista hoje como um emprego público.
A eleição franciscana favorece a campanha dos desocupados. Não há necessidade de grandes quantias para financiar as candidaturas. É “pé no chão”. E ninguém dispõe de mais tempo para encarar o eleitor que o desempregado. O problema é que pesquisa da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, revelou que candidatos sem emprego são tidos, por uma grande maioria, como pessoas preguiçosas, pouco proativas e até incompetentes. Constatou-se uma predisposição para considerar candidatos empregados melhores do que os desocupados com as mesmas habilidades. Detectou-se também que eles seriam mais flexíveis a um flerte transgressor.
Corre-se sim alguns riscos. Por exemplo, eleger quem conhece os problemas locais, mas não tem ideia do funcionamento da máquina e das contas públicas. Não se descarta a hipótese de que o modelo franciscano facilita a vida não apenas dos candidatos ricos como, segundo o ex-ministro Torquato Jardim, do TSE, também os representantes do crime organizado: milícias, bicheiros, traficantes de drogas e até de armas, segmentos com alto poder destrutivo, e que tendem a corroer o sistema político.
…Os brasileiros precisam se indignar para impedir eternizar a resignação como um valor identitário, e ter maior cautela ainda com aqueles com propensão atávica à vigarice.
Parece que as eleições municipais de 2016 caminham para marcar o fim de um ciclo político experimental, deixando um cenário de baixa identificação partidária. Tudo indica que o PT, o PMDB e o PSDB não repetirão os resultados das eleições passadas, quando ganharam quase 50% do eleitorado brasileiro. Conquistaram 2.369 prefeituras, somando mais de 66,7 milhões de eleitores. O PT elegeu o prefeito de São Paulo, e ganhou o maior número de prefeituras nos municípios com mais de 200 mil eleitores. Os três transitaram, entretanto, nas eleições, com 71% de doações ocultas.
Assim, o projeto socializante petista desembocou no maior escândalo político do País, assustando eleitores e ressuscitando forças regionais entre partidários remanescentes de velhas tendências como o PTB, UDN e o PSD, desaparecidas artificialmente para dar lugar a uma pluralidade de agremiações. Para surpresa dos vanguardistas, já em 2012, o PSD, reorganizado um ano antes das eleições, elegeu 497 prefeitos na primeira participação. Cerca de 70 inscritos são candidatos únicos nos respectivos municípios. O partido é apenas um apêndice.
As eleições de 2016 vão se dar assim num cenário de anticorrupção, de recessão e de contestação aos políticos profissionais e aos partidos. Contudo, somente um milagre impedirá, de se produzir uma nova safra de políticos menos corruptos. O mal, as traições e os vícios inconstitucionais generalizaram-se, bem como a tolerância cínica. Seria necessário blindar o sistema contra os interesses econômicos, financeiros e corporativos, o que só poderia acontecer fortalecendo as instituições – é isso mesmo – e preservando um quadro distinto de referências político-partidárias. Passa a ser recomendável desconfiar de políticos que se propõem a “ passar o País à limpo”, em qualquer direção, sobretudo daqueles só sabem fazê-lo corrompendo “o caráter, a inteligência e a política”, conforme o senador Cristovam . Isso não tem nada de histórico, nem de revolucionário. Os brasileiros precisam se indignar para impedir eternizar a resignação como um valor identitário, e ter maior cautela ainda com aqueles com propensão atávica à vigarice.
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Aylê-Salassié F. Quintão* – Jornalista, professor, doutor em História Cultural