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Para flutuar sobre as ondas. Por Antonio Contente
Flutuar… A discussão é que o camarada partiria no dia seguinte de volta à Inglaterra a bordo do seu barco e a fulana não queria ir junto
Faz alguns anos baixou sobre mim o espírito de Juan Sebastian de Elcano (1476-1526), o navegador espanhol que fez a primeira volta do mundo, e resolvi comprar um barco. Nada, claro, para imitar o intrépido comandante. Desejava apenas um flutuante que me levasse e trouxesse, sem precisar recorrer a terceiros, à ilha em que me escondo no Delta do rio Amazonas. Bom, para sondar sobre a compra passei a frequentar o já falecido Iate Clube de Belém e adjacências, às margens do rio Guamá. É que ali existia uma espécie de entreposto de compra e venda de embarcações. Certa manhã, terminada minha ação de sondagens, bateu fome e entrei numa biboca, até de bom aspecto, onde se comiam belas peixadas. E fazia exatamente isso no instante em que ocorreu leve tumulto à entrada do estabelecimento. De repente, pimba, sobrou pra mim: fui atingido, no ato de levar garfada à boca, por um copo que me acertou na testa. Não, não feriu. Fez um galo.
Assim foi que conheci o inglês Warren Purcell — o petardo que me atingiu durante a refeição fora atirado por Cizinha, nativa, namorada dele. A discussão é que o camarada partiria no dia seguinte de volta à Inglaterra a bordo do seu barco e a fulana não queria ir junto. Como vieram falar comigo para pedir desculpas por causa da copada, fiquei sabendo da história e, naturalmente, inquiri à moça porque recusava a viagem. Ela apontou para a enseada, onde um belíssimo veleiro adormecia, ancorado:
— Você acha que vou atravessar o oceano num troço daqueles?
— Olha – respondi, talvez com exígua imaginação – é mais fácil um Titanic naufragar do que barco como aquele. E aí está a história, com iceberg e tudo, que não me deixa mentir…
Como não poderia deixar de ser, nos dias seguintes acompanhei outros capítulos da história. Pois Warren me procurou, disse ter ficado sabendo que eu queria comprar um barco e ofereceu o dele. Naturalmente, até assustado, recusei por motivos óbvios, porém não pude deixar de perguntar por que pretendia efetuar a venda.
— Ah, é que a Cizinha não quer ir comigo. E, sem ela, a vida pra mim não faz o menor sentido.
Bom, seria impossível que eu não ficasse tocado com o que se desenhava como uma bela história de amor. Todavia me ocorreu também o lado prático: era nas suas viagens pelo mundo que o inglês ganhava dinheiro. Escrevendo para várias revistas da Europa, Estados Unidos, Canadá etc, produzindo documentários para TVs, fotografias etc. Tive certo pudor em perguntar como é que iria fazer, e não conseguia imaginá-lo a viver naquela beira de rio amazônico a transportar pessoas e cargas.
Como dias depois o espírito do navegador Elcano desencarnou de mim e desisti de ter um barquinho, deixei de frequentar o entreposto onde se realizavam compras e vendas de flutuantes. Porém, tive novo encontro com Warren Purcell.
Isso ocorreu mais ou menos uns três anos depois, não às margens de algum rio, lago ou oceano, sim no Aeroporto dos Amarais, em Campinas. Confesso que levei um susto, e quase precisei esfregar os olhos para ter certeza que se tratava mesmo do cara. Acabei por chamar, levantando as mãos:
— Mister Purcell!?
Ele me reconheceu com rapidez e até lembrou, apontando para minha testa a perguntar se o galo da copada custou a desaparecer. E surpresa maior tive ao avistar, vindo do interior do prédio do aeródromo a examinar papéis, a figura de Cizinha, a linda nativa que não quis atravessar o oceano no barco, o belo veleiro “Bird”. Sentamos e o desfecho da história foi rápido: ele apontou para um turbo hélice Caravan estacionado assim adiante e contou que então fazia suas viagens a bordo dele, pois já era brevetado como piloto de aeronaves antes de se tornar navegador marítimo. Imediatamente olhei para a moça e ela abriu riso de dentes alvíssimos:
— Não, de voar não tenho medo; tenho pavor de barcos…
E como as surpresas não poderiam terminar aí, contou que fizera curso na Inglaterra e era a co-piloto. Estavam a caminho da Patagônia, a fim de fazer trabalho para uma TV italiana. Meia hora depois, quando vi o casal embarcar, me emocionei muito particularmente ao verificar que no bico do monomotor estava escrito, em letras vermelhas: “Bird”; o mesmo nome do veleiro. Após os acenos de mãos, não me mexi do lugar enquanto a avião não decolou, e sumiu entre dois tufos de nuvens baixas no céu de Outono. Para logo, com certeza, acima delas, flutuar mansamente no azul.
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.