EUA e a caquistocracia.

by Caio Gomez (1984-), desenhista brasiliense via Correio Braziliense

Caquistocracia …Um dia a gente acorda e descobre que a internet livre de dono não passou de sonho fugaz. As redes que hoje canalizam os fluxos da comunicação humana têm nome, endereço e, sobretudo, proprietário…

EUA e a caquistocracia.
by Caio Gomez (1984-), desenhista brasiliense
via Correio Braziliense
 Artigo publicado no Correio Braziliense e no blogue do autor

Corria a última década do século passado quando a palavra internet começou a circular. Ela já existia antes, mas só circulava entre peritos e iniciados. Naquela época, corria a voz de que logo logo essa tal de internet seria introduzida na firma em que eu trabalhava. A curiosidade me levou a procurar me informar junto a um colega mais enfronhado.

Por meio de esquemas e desenhos rabiscados num canto da mesa, o rapaz me explicou que internet representava o futuro da telecomunicação. Permitia que qualquer um, da comodidade de seu escritório, se comunicasse com qualquer pessoa ao redor do globo, instantaneamente, sem custo. Perguntei quem era o dono dessa maravilha. Quem se maravilhou com a resposta fui eu: a invenção não tinha dono.

Como assim, não tem dono? Confesso que não entendi bem como uma estrutura gigantesca poderia vir a existir e funcionar sem dono. Os anos passaram e internet se tornou a companheira inseparável de parte considerável da humanidade. Hoje em dia, sem internet, nada mais funciona. Nem trem, nem avião, nem hospital, nem firma, nem telefone. Nada mesmo.

Surgiram as redes sociais – que às vezes dá vontade de chamar de “redes associais”. Foram chegando de mansinho, infiltraram-se entre jovens e maduros, entre ricos e remediados, entre inteligentes e cretinos. Com raras exceções aqui e ali, enredaram as gentes. (“Enredar” é o próprio de toda rede que se preza, pois não?)

O que antes se aparentava a fenômeno passageiro acabou tornando-se um tique mundial: ninguém dá dois passos sem consultar suas “redes” pra conferir se o planeta continua de pé. Para muitos, as redes se tornaram o único veículo de informação. Só que tem uma coisa: o advento das redes sociais enquadrou e canalizou a liberdade que a internet prometia 30 anos atrás. Aquela sonhada “cabeça fresca e cabelos ao vento” foi acaparada pelas redes sociais, com formatação imposta e chuva de anúncios publicitários.

Um dia a gente acorda e descobre que a internet livre de dono não passou de sonho fugaz. As redes que hoje canalizam os fluxos da comunicação humana têm nome, endereço e, sobretudo, proprietário. O que, até outro dia, parecia um espaço de total liberdade já não é exatamente um. Firmas têm dono, e donos impõem sua visão de mundo. Com o crescimento exponencial dos negócios, os donos das redes enricaram. Insaciáveis, não se contentam com os bilhões arrecadados. Querem mais, muito mais.

Ao se dar conta de que Donald Trump se preparava para assumir a presidência cercado de bilionários, aí incluídos os donos das redes sociais, Joe Biden alertou, em seu discurso de despedida, para o perigo de os Estados Unidos virem a ser governados por um clube de bilionários.

caquistocracia

Sem tirar-lhe a razão, convém acrescentar que, entre esses magnatas, estão os proprietários das maiores redes sociais do planeta, como Twitter (agora chamada X), Facebook, Whatsapp, Instagram. Que o mundo seja governado por ricaços é compreensível, tem sido assim desde sempre. A novidade é ver aninhados no poder os donos dos canais que, com frequência, exercem a função dos confessionários de antigamente. É preocupante deixar alegrias e penas accessíveis a um nababo que, com o auxílio da IA, terá nas mãos uma massa de conhecimentos que lhe conferem poder extraordiário sobre cada um dos habitantes do planeta.

Dispor desse arsenal de informações e sentar à mesa do homem imprevisível que lidera o país mais poderoso é bagagem perigosa como dinamite. Explosiva. O único caminho para minorar o problema seria que todos cancelassem sua inscrição nas redes. Mas… cancelar, quem há de?

Os Estados Unidos de Trump 2.0, a julgar pelos nomes já anunciados de ministros e auxiliares, não prenunciam contar com um governo de sumidades. Está mais para um “L’État c’est moi” de Louis 14, com um magnata de temperamento narcisístico e explosivo no centro de uma corte de adoradores, alguns tão magnatas quanto ele ou mais. Uns dizem “amém” e outros respondem “amém nós todos”.

Que ninguém se engane: nos EUA, está instalado o governo dos piores, a caquistocracia.

________________________

JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos,  dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.

_____________________________________________________________

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assine a nossa newsletter