Perfume de mulher. Por Antonio Contente
…ao longo da vida, se os momentos que passou com a guria não foram suficientes para cravá-la em seu coração, digamos, como um punhal, o mesmo já não se poderia dizer do perfume. Imorredouro…
Na alentada produção do diretor/ator Woody Allen o filme que mais gosto é “Hannah e Suas Irmãs”. Película dos anos oitenta (1986), quando fui assisti-la comecei a ser tomado já na exibição dos letreiros com os créditos. Pela simples e boa razão que o tema de fundo a acompanhá-los era “I’ve Heard that Song Before” (Já Ouvi Esta Canção Antes), tocada, divinamente, ao trompete, por Harry James. As outras músicas inseridas no correr da história são todas do mesmo gabarito. Já as interpretações do elenco rolam absolutamente perfeitas, tanto que dois dos astros, Michael Caine e Dianne Wiest, foram oscarizados como os melhores atores coadjuvantes daquele ano.
Há uma cena, logo no começo do filme, em que o narrador, falando na primeira pessoa, conta da funda impressão que a ele causou o perfume de certa mulher com quem, depois, se envolveu. E como a vida, quanto mais por ela navegamos tanto mais nos revela o quanto imita a arte, é que, revendo o trabalho de Allen, recentemente, lembrei da figura de um amigo. Que durante anos teve certo perfume de mulher densamente ligado à sua trajetória. Até o dia em que, finalmente, conseguiu chegar ao instante em que o cheiro se dissipou no ar. Então, para sempre.
Tudo começou numa festa, nos chamados Anos Dourados. A comemoração (era um aniversário) corria num belíssimo apartamento em Higienópolis, na Capital. Rogério, que nem conhecia tanta gente na reunião, olhava alentado album de fotografias que encontrou no aparador, quando foi tomado por um perfume. Voltou-se para descobrir que o aroma vinha de certa moça, absolutamente linda, que se colocara a seu lado. Ela apontou para as páginas pedindo ao rapaz que abrisse na de número 44. O moço obedeceu, mirou bem, para enfim perguntar:
— Você?
— O fotógrafo é meu amigo, e eu posei. Que tal?
— Belíssima – respondeu. E levando o livro ao nariz, murmurou: — A imagem está tão incrivelmente perfeita que parece exalar esse perfume que você está usando.
— Ganhei hoje. Posso te confessar? Nem sei o nome…
Foi o começo. Depois, já começando a madrugada, ele ofereceu carona, saíram juntos e ela dormiu no apê do rapaz. Cenário em que se desenrolou o primeiro capítulo de uma novela que durou anos. Isso porque, quando ele acordou, a garota, de quem nem o nome sabia, tinha, silenciosamente, ido embora. A única pista que dela ficou foi uma esquecida echarpe de seda. Da qual emanava o perfume não identificado. Material que, talvez, nas mãos de Hercule Poirot, Sam Spade, Philip Marlowe ou Sherlock Holmes, talvez levasse à proprietária.
Rogério ainda tentou levantar, inutilmente, alguma pista da moça entre as duas ou três pessoas que o levaram à festa quase como penetra. E ao longo da vida, se os momentos que passou com a guria não foram suficientes para cravá-la em seu coração, digamos, como um punhal, o mesmo já não se poderia dizer do perfume. Imorredouro não só na echarpe que guardou por anos e anos, como também em muitos momentos que o rapaz viveu até se tornar empresário de grande sucesso. Muitas vezes em aeroportos, em lojas, em escritórios sempre que sentia um perfume que lembrava o daquela noite, se voltava na busca da origem. Porém nunca vinha da pessoa que conheceu numa festa em Higienópolis, nos Anos Dourados.
Mas os tempos correram e, no começo dos noventa, uma noite ele recebia em sua casa, no Morumbi, para jantar, um empresário americano com quem tinha transações entre Nova York e Londres. O camarada chega com uma entouragezinha e, assim que entrou na mansão em que Rogério vivia, este para, no tempo e no espaço, pois emanava da esposa do gringo exatamente o perfume que o vinha acompanhando ao longo da vida. E mais inquieto ficou ao saber que a criatura, em quem captou feições daquela de certa noite nos Anos Dourados, era brasileira residente nos Estados Unidos desde o começo dos sessenta. Houve o jantar, mas a cabeça do nosso herói navegava a mil, tanto que sua mulher perguntou se estava bem.
— Nunca me senti melhor – respondeu, enquanto a reunião caminhava para o fim.
Pouco depois, na despedida do casal, Rogério olhou bem nos olhos de Vivi, a brazuca que casara com o gringo, e murmurou:
—- Desculpe perguntar, mas que perfume maravilhoso é esse que você está usando?
— “Forever” – ela respondeu – Acrescentando a tradução, já a abrir a porta do carro: — “Para Sempre”… igienóoHH
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos