entitled

A síndrome e a pandemia do “entitled”. Por Myrthes Suplicy Vieira

Na essência, dizer que alguém se considera “entitled” diz respeito ao fato de que a pessoa acredita (ou imagina) que “tem o direito de”, dá-se permissão para dizer ou fazer algo ou, ainda, obter algum benefício, privilégio ou tratamento especial.

entitled

O adjetivo “entitled”, popularmente usado há muito tempo na língua inglesa, é de difícil tradução para o português. Com exceção do óbvio sentido de “intitulado(a)” que se aplica mais especificamente a livros e textos, peças de teatro, filmes, quadros, etc., é bastante complicado encontrar uma única palavra que defina com precisão seu significado central, seja em português ou mesmo na língua inglesa.

Na essência, dizer que alguém se considera “entitled” diz respeito ao fato de que a pessoa acredita (ou imagina) que “tem o direito de”, dá-se permissão para dizer ou fazer algo ou, ainda, obter algum benefício, privilégio ou tratamento especial. Nem sempre a reivindicação é legítima, ou seja, relativa a um direito legalmente previsto – como o de receber aposentadoria uma vez cumpridos os requisitos legais. Muitas vezes a palavra é usada para se referir a um direito reivindicado “sem ter de se esforçar para conquistá-lo ou sem o merecer, apenas por ser quem você é”, como aponta o próprio dicionário Cambridge.

Nesse sentido, uma tradução mais comum entre nós é a de “permitir-se”, sentir-se “autorizado(a)” a emitir uma opinião, manifestar um pensamento/ comportamento, mesmo que ele não seja condizente com as normas do politicamente correto ou com os princípios democráticos, e mesmo que isso implique sofrimento ou constrangimento para terceiros, ou ainda a se sentir no direito de desrespeitar ou contornar restrições sociais em nome de nossa vontade soberana.

Filha dileta das carteiradas tipo “Sabe com quem você está falando?”, a síndrome do entitled transformou-se rapidamente em pandemia, com um poder de contágio só comparável ao do coronavírus. Das elites que se imaginam acima do bem e do mal para as classes populares, dos adultos para as crianças, dos homens para as mulheres, dos ateus para os religiosos fundamentalistas, dos militares para os civis. Se o entregador não aceitou subir até meu apartamento, dou-me o direito de agredi-lo verbal ou fisicamente. Se meus pais não aceitam meu namoro, sinto-me no direito de tirá-los do meu caminho à força para mostrar que quem manda no meu destino sou eu. Se minha ex-mulher acha que pode se envolver com outros homens, vou mostrar que ela está assinando sua sentença de morte. Se meu marido não me trata com respeito, não me custa nada colocar veneno na sua comida.

E por que isso acontece? Acredito que pode ter contribuído para a exacerbação da síndrome a profunda fragmentação das identidades e papéis sociais a que vimos assistindo ao longo das últimas décadas. Se antes as reivindicações aconteciam entre as diferentes “tribos” e grupos organizados de pressão, mais tarde elas se radicalizaram ainda mais com a pulverização das individualidades. Hoje em dia a única autoridade que respeitamos é a que vem de dentro, das convicções pessoais a respeito dos limites do poder aplicado às relações humanas. O mal-estar na civilização, a crise da democracia representativa e a adoção de regras típicas do mundo virtual transplantadas sem critério para o mundo real parecem ter sido outros fatores decisivos a determinar a extinção dos freios morais. E, quando a noção de bem comum se perde, é inevitável o surgimento de demandas paroquiais.

Por coincidência, durante meu período de recuperação de uma queda, tive acesso a dois livros que lançaram luz sobre outros fatores que podem servir de combustível para a síndrome do entitled. O primeiro, intitulado “Desaparecer de Si”, de David Le Breton, mostra como contemporaneamente as pessoas se esforçam para fugir das coerções de uma identidade que já esgotou seus propósitos, isolando-se do mundo ou aceitando o convite à experimentação de outras identidades. O segundo, intitulado “The tryumph of the slippers” [O triunfo das pantufas], escrito pelo filósofo francês Pascal Bruckner, mostra como a luta por um direito muda de sentido ao longo do tempo, podendo se transformar até no seu exato oposto. Durante a pandemia de covid-19, muitos líderes governamentais e boa parte das populações protestavam contra a determinação sanitária de ficar em casa, alegando que ela violava o direito constitucional de ir e vir. Pós-pandemia o cenário mudou radicalmente: depois de terem experimentado o conforto de poder ficar de pijama (e pantufas) o dia todo, não ter de enfrentar o trânsito caótico das grandes cidades, se alimentar mal e não poder acompanhar o cotidiano da família e a educação dos filhos, muitos trabalhadores passaram a defender o home office como uma questão de vida ou morte para as empresas e até como solução inesperada para enfrentar também os desafios de mobilidade urbana e proteção do meio ambiente. Hoje parece ser mais comum lutar pelo direito de não sair de casa do que alinhar-se com qualquer argumento racional de defesa do bem coletivo.

Outro fenômeno que tem chamado minha atenção para alimentar o entitlement é a emergência daquilo a que dei o nome de “arco reflexo emocional”. Sabe quando o médico bate com um martelinho no seu joelho e sua perna levanta sem que você tenha dado o comando para seu cérebro? Pois então, acredito que o mesmo está acontecendo no campo da neuropsicologia. Sem tempo para digerir as emoções provocadas por estímulos externos desagradáveis, tendemos a reagir de bate-pronto, sem considerar as consequências danosas de nossa reação sobre terceiros e sobre nossa própria imagem social. Distraídos com a miríade de estímulos multissensoriais em que as novas tecnologias nos afogam, acabamos abrindo mão de usar o cérebro humano como órgão emissor e permitimos que ele passe a ser mero receptor de informações vindas de fora. Sem a necessária mediação da reflexão e da introspecção, tenho medo de descobrir que a próxima luta na qual a humanidade vai se engajar será obrigatoriamente pelo direito de não pensar.

 ________________________

(*) Myrthes Suplicy Vieira –  é psicóloga, escritora e tradutora.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assine a nossa newsletter