UM INESPERADO NATAL

Um inesperado Natal. Por Antonio Contente

         — Sabe que dia é hoje? – Pergunto para o dono do barco.  — Hoje?… – Ele vacila.  — É 25 de dezembro – acentuei – ontem foi a noite do Natal. — Bom — Giovanni sorriu – e o presente que recebemos, como é de praxe na data, é essa paisagem linda que nos cobre.

nATAL

         Após grande chuva de noite inteira, ao amanhecer algo parecia ter mudado em Paquara, lugarejo mínimo no litoral atlântico do Pará. E ao falar isso não me refiro apenas ao fato de que os passarinhos pareciam estar de volta aos quintais, ou de que os bem-te-vis, que adoram céus lavados, ali estarem a arrebentar os peitos em cantigas. Algo mudara nas pessoas também, pois pude verificar que até os papos no Entreposto de Pesca e num butequinho, ao lado, pareciam mais animados. Porém, tive noção realmente exata das mudanças quando Giovanni, ou “Giovanni das Águas”, como era mais conhecido, apareceu na casinha na qual eu estava hospedado. É que tal figura, de ombros largos e pele queimada de sol, só pintava quando precisava fazer algum reparo no seu barco.

         — O que arrebentou desta vez? – Perguntei, assim que o vi.

         — Não, não arrebentou nada – ele respondeu.

         — E então, veio fazer o que?

         — Vim te buscar.

         — Ora – respondi – você vive além dos horizontes e nem sabia que eu estava por aqui.

         — Sabia — quem sorri agora é ele – pois não é raro você despencar nestas beiradas, em dezembro.

         Nos nossos longos anos de amizade, certa vez eu disse a Giovanni que gostaria, ocorrendo uma oportunidade, de pegar carona no seu barco até certa ilha no delta do rio Amazonas. Acentuei que desejava fazer um roteiro sem pressa. E até brinquei, garantindo que “o apressado come cru”.

         — A coisa por aqui está fraca – me disse Giovanni – e vou aos camarões nas costas do Amapá.

         — Bom, saímos quando?

         — Quando o amigo quiser. Que tal amanhã?

         Imediatamente fixo o olhar no calendário pendurado na parede e verifico que dezembro estava quase no fim.

         — Vou arrumar a maletinha – apontei.

         Antes, queria dizer duas ou três coisinhas sobre o “Albatroz”, o que não chegava a ser nenhum achado em termos de nome de embarcação. Tratava-se de flutuante de pesca, com tudo a que tinha direito; todavia, com algo mais. Uma vez que possuía duas amplas cabines bem montadas, sendo que, na do dono, sobressia sistema de som acoplado ao rádio de bordo. É que Giovanni, como bom filho de italianos, gostava de óperas. Recordei, inclusive, de certa noite, num outro Verão, em que, no Porto Grande de Salinópolis, uma ária do “Rigoletto” em alto volume que saia de bordo me remeteu ao filme “Fitzcarraldo”. No qual um alemão alucinado, no âmago da floresta amazônica profunda colocava, num gramofone, Caruso a cantar para os aborígenes.

         Na manhã seguinte, seis horas em ponto, aproveitando a maré, largamos no “Albatroz”, com tripulação de cinco homens mais o proprietário. Saímos em marcha lenta, beirando o manguezal, até certa praia que termina num grande funil. Que precisa ser atravessado para se alcançar o mar aberto.

         Com qualquer tempo as ondas ali são enormes. Em dias de ventanias fortes as embarcações, naquela área, praticamente submergem. E nós, na gloriosa manhã azul de quase final de dezembro, entramos no turbilhão. As ondas batiam no barco e na gente. Meu único prejuízo foi que as espumas arrancaram do meu rosto, e levaram, um belo óculos de sol.

         Naquela ocasião, apesar da influência das águas barrentas do rio Amazonas que entram pelo mar, o Atlântico estava relativamente claro. Não era época de grandes cardumes; barbatanas de tubarões vimos apenas três ou quatro.

         Bom, após quase dia inteiro de viagem calma, resolvemos procurar enseada em alguma ilha, para passar a noite. Giovanni abriu diante de mim velho mapa relativamente ensebado, e mostrou, apontando com o dedo grosso:

         — Estamos aqui.

         — Sim – também apontei – mas não vejo escrito o nome da ilha.

         — Não está escrito – meu amigo respondeu – mas tem nome sim. Chama-se Ilha da Cotia, porque muito desses animais vivem lá.

         Ao se fazer a noite, com a âncora do “Albatroz” no fundo a nos segurar diante dos coqueiros, Giovanni abriu bebidinha e colocou no som trechos da ópera “La Traviatta”. Depois da audição, foi ligado o rádio, para ouvirmos notícias do Brasil e do mundo. Quando o locutor anunciou que o presidente do Brasil  estava com viagem programada para ir, em janeiro, à então União Soviética, Giovanni olhou para mim e perguntou:

         — O que será que esse cara vai fazer lá?

         — Pra te ser franco, não sei – respondi, já meio sonolento.

         — Será que alguém sabe?

         — Não, acho que não – suspirei – nem mesmo a KGB.

         Sentindo o vento fresco com aroma de folhas da selva próxima, e de sargaços marinhos, dormimos.

         De manhã, pelas seis horas já estávamos todos de pé. Sobressaindo, agora, o cheiro do café coado, de repente meus olhos bateram num calendário, sobre pequeno móvel.

         — Sabe que dia é hoje? – Pergunto para o dono do barco.

         — Hoje?… – Ele vacila.

         — É 25 de dezembro – acentuei – ontem foi a noite do Natal.

         — Bom — Giovanni sorriu – e o presente que recebemos, como é de praxe na data, é essa paisagem linda que nos cobre.

         Daí, deu ordem pra partida. E voltamos para o rumo do horizonte azul.

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Antonio ContenteANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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