Nunca fomos leitores. Por Jaime Pinsky
… É elementar: só podemos perder um hábito que temos, não um que nunca tivemos. Quem nunca fumou não tem como parar de fumar. Quem nunca leu não pode deixar de ser leitor…
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO SITE DO AUTOR, www.jaimepinsky.com.br
Toda vez que comento notícias lamentando o decréscimo do hábito de leitura no Brasil tenho a sensação de estar perdendo tempo e enganando meu interlocutor. É elementar: só podemos perder um hábito que temos, não um que nunca tivemos. Quem nunca fumou não tem como parar de fumar. Quem nunca leu não pode deixar de ser leitor. E, com as devidas desculpas aos que afirmavam o contrário, no Brasil o hábito de leitura, como se diz, “não pegou”. Nunca. Com exceção de meia dúzia de leitores teimosos, entre os quais se incluem o punhado de amigos que me leem, no Brasil não se lê. Estou falando, evidentemente, de ler como hábito, como vício, como dependência, estou falando de ler livros inteiros e entender o que se lê, de absorver, assimilar o escrito, como falava Antonio Candido, e só então questionar o escrito, não passar os olhos e redigir um comentário idiota, demonstrando despreparo e ignorância. Falo de ler sendo letrado, não apenas alfabetizado. Deste tipo de leitores, temos muito poucos. Apesar dos esforços de meia dúzia de valentes batalhadores pela democratização do saber. O fato é que não somos um país de letrados. E, como sempre, a História ajuda a explicar por quê.
Para início de conversa, nossos “descobridores”, os queridos portugueses, quando utilizavam nosso território como colônia, impuseram uma série de limitações culturais aos brasileiros, entre as quais a proibição de disporem de máquinas impressoras de livros. Assim, apenas no início do século XIX, quando a América espanhola já tinha universidades havia três séculos e graças a Napoleão Bonaparte (que fez a família real fugir de Portugal e se instalar no Brasil), é que se criou a Imprensa Régia e livros começaram a ser confeccionados em nosso país! Até então eles tinham que ser importados, o que implicava em onerá-los e limitar sua circulação. Por outro lado, não havia grande demanda por livros, pois a leitura não era estimulada, nem a laica, nem a religiosa, já que uma das funções dos sacerdotes católicos era a de explicar as questões religiosas que importavam, para que o fiel não tivesse motivos para investigar, por conta própria, e eventualmente questionar o próprio poder da verdade única. Nem a Bíblia se estudava. Decorava-se apenas algumas rezas e obedecia-se aos sacerdotes. Afinal, a verdade, única, era a da Igreja. Para quem insistisse em ter visões diferentes da oficial, havia a Santa Inquisição com seus instrumentos de tortura e suas fogueiras. Assim eram tratados os candidatos a dissidentes.
Pouca gente lia. Além de saber decifrar a escrita (algo raro por aqui), era necessário ter grande dose de curiosidade intelectual e possuir dinheiro para importar livros. Ser leitor no Brasil durante o período colonial não era para qualquer um.
E continuou assim, mesmo no século XIX, a época dos nossos Pedros, o I e o II. O enorme contingente de negros escravizados raramente era alfabetizado, o mesmo acontecendo com os numerosos membros de grupos indígenas, também marginalizados. Mesmo para o restante da população brasileira não havia programas consequentes de acesso às letras neste território em que os cartórios e o bacharelismo improdutivo davam as cartas. A cultura oral prevalecia em detrimento de conhecimentos mais estruturados que dessem conta de, pelo menos, buscar compreender os avanços científicos e culturais dos quais o século XIX era pródigo. Lembro-me sempre da narrativa que, no livro didático que minha classe utilizava, falava da República proclamada por Deodoro da Fonseca diante do povo abestalhado, que sequer entendia o que estava acontecendo. Claro que os militares sabiam muito bem o que estavam fazendo, mas a população presenciando a História sem entendê-la é um retrato da relação entre os poucos poderosos e a “plebe rude”, que não somente não era chamada a se manifestar, mas sequer se dava conta do que se falava. Este era o Brasil já no final do século XIX.
Na República, tivemos, finalmente, momentos iluminados, com alguns políticos e um punhado de educadores entendendo que da quantidade se obtém a qualidade e que era preciso dar oportunidade a todos para que o país pudesse crescer e ter gente qualificada em diferentes áreas, seja na esportiva, na artística, nas ciências e nas letras, na administração privada e na pública. Ao longo do século XX, o país se urbanizou, modernizou-se, ganhou salas de aula nas cidades e privadas nas casas, mas, a despeito dos esforços de educadores do porte de uma Magda Soares, não avançou muito nos hábitos de leitura.
Nunca se leu muito neste país, esta é a triste verdade. E sempre se leu mal, como se a ignorância, uma vez assumida, pudesse valer como se fosse um título honorífico. Não é.
A fase de mostrar músculos poderosos ficou para trás. Agora o mundo é dos que sabem. Parece que ainda não nos demos conta disso. Que tal nossas autoridades da área de Educação criarem projetos corajosos, ousados, como os de países que, em diferentes fases da História, em diferentes lugares do Planeta, praticando diferentes regimes políticos, fizeram grandes revoluções educacionais e mudaram radicalmente para melhor?
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JAIME PINSKY: foi professor na Unesp, USP e Unicamp, é doutor e livre docente da USP e professor titular aposentado da Unicamp, além de autor e coautor de mais de 30 livros, entre os quais Novos Combates pela História e As origens do nacionalismo judaico.(Editora Contexto)
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