A arte de perder eleições. Por Fernando Gabeira
A arte de perder eleições… Sempre tiro o chapéu para os vitoriosos e respeito as decisões majoritárias. Mas esse é meu limite. Nem sempre as considero acertadas apenas por ser majoritárias. Alemães e italianos já se equivocaram, com mais entusiasmo…
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO E NO SITE DO AUTOR,
www.gabeira.com.br, 18 DE NOVEMBRO DE 2024
Eu já deveria ter esquecido as eleições nos Estados Unidos. Torci por Kamala Harris, perdi. Perdi eleições municipais, estaduais e federais. Uma fora do Brasil não é nada. Se houver algo em Marte, farei minha aposta.
A energia inicial, milhões de dólares arrecadados entre pequenos doadores, me impressionou. Pensei que a alegria da campanha e seu olhar para o futuro bastariam. Hoje, percebo que havia uma raiva e uma frustração que o otimismo superficial não resolve. Trump interpretou bem, venceu.
Sempre tiro o chapéu para os vitoriosos e respeito as decisões majoritárias. Mas esse é meu limite. Nem sempre as considero acertadas apenas por ser majoritárias. Alemães e italianos já se equivocaram, com mais entusiasmo.
Não consigo entender como racional uma proposta de deportação em massa. Não só porque será difícil e mais caro substituir essa mão de obra com americanos natos. A ideia de Trump de expulsar imigrantes e mesmo a de Giorgia Meloni, de confiná-los num outro país, não resolvem.
Tangidos por fome, guerras e desastres naturais, milhões continuarão a arriscar suas vidas em busca de oportunidades. O capitalismo garante liberdade para o fluxo de capitais e mercadorias, mas bloqueia a mão de obra. É uma negação de suas bases econômicas. Veremos parte da humanidade tentando escapar; outra, de certa forma, lançando-a ao mar.
Vivemos o ano mais quente da História. A temperatura media já é de 1,5 °C mais alta que a do período pré-industrial. Por que negar tantas evidências, sobretudo num país atingido por furacões cada vez mais fortes, do Katrina ao Milton? Nesse contexto, o slogan drill baby, drill (perfure, querido, perfure) — cavar para buscar petróleo entre as pedras — é uma forma simbólica de cavar a própria sepultura.
A própria ideia de taxar importações, de se fechar, de certa maneira, para o comércio internacional parece sedutora, supõe uma idade de ouro da indústria americana. Mas, na verdade, pode encarecer e dificultar a vida dos americanos. É um tipo de visão que favorece o avanço do grande competidor que é a China. Os chineses se prepararam com visão de longo prazo.
Darei apenas um exemplo: em 2007, eles compraram uma montanha no Peru, o Monte Toromocho. Ele continha 2 bilhões de toneladas de cobre. Nesta semana, a China inaugura um porto gigantesco a 80 quilômetros de Lima. Eles se preparam para dominar as commodities desde o início do século e agora constroem a Nova Rota da Seda. Se abstrairmos o regime político autoritário, os chineses parecem incluir o planeta em sua estratégia, enquanto os Estados Unidos tendem a se fechar numa política isolacionista.
Tudo isso ainda são impressões iniciais. Teremos ainda um longo caminho, e a imprensa americana será uma espécie de termômetro para medir a experiência renovada de Trump. É uma imprensa que, de modo geral, também apostou em Kamala Harris e vive sob grande pressão da direita. Ela pode ter cometido erros, subestimado a frustração popular, mas ainda é uma indústria que gasta parte do dinheiro apurando e confirmando a veracidade das informações. Por mais que seja atacada, a verdade é que é explorada pelas plataformas eletrônicas, que reproduzem seu trabalho sem remunerá-lo.
As suposições de que é possível informar sem apurar e confirmar, de que há uma liberdade ilimitada e de que realidades paralelas têm o mesmo valor dos fatos verificáveis servem apenas para aumentar a confusão e turvar o debate político.
Assim como na pandemia, abre-se um período em que o papel da imprensa americana será essencial ao lado da ciência, que se defrontará com uma grande onda de negacionismo, das mudanças climáticas à importância das vacinas.
Em síntese, a derrota sempre nos leva à humildade de reconhecer erros, reformular caminhos. Nem sempre os vencedores detêm outra verdade, além da verdade de que são os vencedores.