Tatá do Martelo

Tatá do Martelo. Por Eliana Haberli

Gente, vamos desapegar dessas coisas, diz Tatá. Café Filosófico para um grupo que gosta de refletir? Martelo neles. Avenida arborizada? Vamos dar um jeito de pedagiar. A lei protege? Vamos martelar as liminares. Não querem aumentar o túnel para proteger moradores e natureza? Deixa comigo, pensa Tatá…

Tatá do Martelo

Tatá sempre quis poder. Sua maior oportunidade surgiu quando lhe foi oferecido o reino de Piratininga. Que oportunidade, o reino mais rico e adiantado de todo o País! Além de fabuloso, o reino de Piratininga tem moradores que qualquer arrivista, visionário ou poderoso almeja. Tem no seu território um bocado de gente que ama a ordem, o progresso, o dinheiro e os velhos costumes. É uma gente legal, eu os conheço bem, também vivo em Piratininga. Mas pertenço à turma que percebe que a ordem precisa um pouco de reformas, que o progresso não é só material, que o dinheiro tem de ser empregado para o bem de todos, e que antes de martelar é preciso pensar. O pessoal da ordem e progresso tem alergia dessa história de pensar antes de martelar.

Assim, Tatá está vivendo seus dias de glória. Tem pressa, vai que a turma que aplaude o martelo mude de ideia, nunca se sabe. Vamos martelar com força!  Escolas públicas, vamos dar um fim. Saúde pública, porque não martelar? Praças com árvores e passarinhos? Raspa tudo fora. Fazenda modelo em Campinas? Gente, vamos desapegar dessas coisas, diz Tatá. Café Filosófico para um grupo que gosta de refletir? Martelo neles. Avenida arborizada? Vamos dar um jeito de pedagiar. A lei protege? Vamos martelar as liminares. Não querem aumentar o túnel para proteger moradores e natureza? Deixa comigo, pensa Tatá. Espaço verde organizado pelos próprios vizinhos, com horta e pomar? Nem preciso do martelo, me dá tratores para derrubar. Trator é bom porque derruba muros, derruba casas, não tem como a lei proteger depois que tudo está no chão. O pessoal quer proteger árvores centenárias! Que apego, diz Tatá.

Tatá tem exemplos famosos para seguir. Aquele chefão Netanaiú, que usa poderosas armas e eficiente exército para arrasar os vizinhos fez assim, vocês não viram? Netanaiú não usa martelo, usa bombas mortais. Tatá foi lá apertar as mãos do chefão no meio da ferocidade.

Eu me pergunto até que ponto o pessoal da ordem e progresso apoia Tatá e seu martelo. Por enquanto o apoio é massivo e eles não querem pensar, a maioria do grupo não gosta de argumentos. Mas Piratininga tem seu lado de fidelidade ao planejamento, de “apego” aos bons modelos, até de amor à cultura e às artes. Tem uma contradição aí. Contradição fica escondida, escondida, mas um dia emerge.

Confesso a vocês que, em alguns casos, eu também gosto de martelos. Martelos são grandes amigos nas mãos certas. Porém, martelar com a coronha do revólver a cabeça do suspeito ou com qualquer arma o morador rebelde da favela, ou o rosto da testemunha incômoda, tô fora desse bando. E o Tatá? Ele é esperto, não revela tudo.

Caros leitores, “ordem e progresso” é um pedaço de uma frase do século 19, quando se imaginava que o progresso material e científico era tudo. Não é tudo, isso a gente já sabe. Da mesma forma que martelo não pode estar na mão errada, “progresso” não pode ser desculpa para defender os que querem apenas seu lucro pessoal.

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ELIANA HABERLI é jornalista e cronista. Graduada pela Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero. Entre os anos de 1970 e 2014 trabalhou em jornais como Folha de S.Paulo, Jornal da Tarde, Gazeta Mercantil e Diário do Comércio.Participou durante alguns anos do blog Escritablog chefiado pelo jornalista Wladyr Nader até seu encerramento em 2020. É uma das autoras do livro de crônicas “Um Mar Vivo de Corações Expostos”, publicado em 2021 pela Editora Lavra, junto com Elizabeth Lorenzotti, Nanete Neves e Teresa Ribeiro.

5 thoughts on “Tatá do Martelo. Por Eliana Haberli

  1. Mais uma obra precisa de Eliana Haberly. Consegue dizer tudo ida a verdade nua e crua sem perder a poesia. Texto inteligente e lúcido. Obrigada, Eliana!

  2. Gostei muito da crônica do martelador, Eliana. Pena que estas marteladas do Tatá sejam tão mal aplicadas… quem sabe um erro e elas acertam o próprio pé… torcendo…

  3. Eliana, que texto maravilhoso! Parabéns!
    Consegue traduzir de forma bem humorada e inteligente as tentativas de destruir o patrimônio de Piratininga, construído arduamente: ilhas de excelência científica, intelectual, material, produtiva, urbanística e exemplos de inovação em gestão pública etc etc etc..

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