A derrota dos extremos na urna.

A derrota dos extremos na urna. Por Fernando Gabeira

Uma mensagem da vizinha:

— Você foi um pouco injusto.

Como assim? Era uma linda manhã de segunda-feira. Bem cedo, o sol inundara a casa com um brilho escandaloso, a temperatura da água estava perfeita, assim como a intensidade da brisa. Qualquer injustiça, ainda que pequena, contaminaria a beleza do dia.

Ela acha que atribuí ao tom alegre e enérgico da campanha de Kamala Harris algo que estava bem diante de mim na vitória de Eduardo Paes. Devo uma explicação. Considero Eduardo Paes agregador, alegre com seu chapéu-panamá, amigo dos sambistas, enfim, alguém cujas características podem vencer o rancor das correntes extremas.

No entanto não me referia apenas à personalidade do candidato, mas à atmosfera da campanha, ao clima coletivo posto em  marcha sob a inspiração de um nome. Sem negar as qualidades de Paes, a razão de seu êxito, para mim, não está principalmente no humor, mas sim nas realizações.

Claro que sempre posso me enganar, mas minha bússola são as ruas. Cito o caso de um homem com quem conversei, perguntando sobre seu voto. Paes, disse ele. E acrescentou:

— Pobre sempre agradece o que recebe, ainda que não seja muito. Nossa cachorra de 16 anos estava morrendo, e as pessoas da clínica diziam que o tratamento, além de caro, não tinha futuro. Descobrimos a clínica de animais ali na Mangueira. Era pública e muito boa.

O homem estava agradecido porque a clínica municipal de animais atendia com senhas, tinha ar-condicionado, veterinários competentes e ainda proporcionou mais três meses de vida para sua Belinha. Esse era o nome da cachorra, por sinal, um encanto, a julgar pelas fotos. Pensei muito nesse exemplo. Quantos não são agradecidos pelos parques, pelos ginásios técnicos, enfim, por todo o conjunto da obra que Eduardo Paes pôde oferecer, depois de 12 anos de mandato?

Apenas nas capitais, dez prefeitos venceram no primeiro turno, alguns com mais de 80% dos votos. Para mim, é uma demonstração clara de que as pessoas, de modo geral, recompensam as boas administrações. Minha coluna que menciona o bom humor e a energia da campanha de Harris, como antídoto às correntes mais ressentidas da política, pode ser completada agora com um fator que realmente é superior a eles: o conjunto de realizações. As forças disruptivas — como Pablo Marçal ou mesmo um Milei argentino — não podem ser vencidas apenas com campanha em alto-astral. É preciso um trabalho competente.

Embora existam muitas interpretações sobre as revoltas de 2013, sempre concordei com a ideia de que iam além dos 20 centavos de aumento no transporte público. Eram um grito de pagadores de impostos indignados com o fato de o Estado não devolver com serviços públicos eficazes os milhões que arrecada.

A ausência dessa resposta do Estado abre caminho a soluções que o rejeitam totalmente, como o anarquismo liberal de Milei ou do próprio Marçal. Fortalece a ideia legítima da busca da prosperidade individual, mas a torna um valor absoluto. Quem embarca nessa canoa acha que os políticos também estão envolvidos na busca da prosperidade individual, com a diferença de usar dinheiro público e de mascarar seu desejo com um discurso do bem coletivo.

As administrações reconhecidas pelo povo afastaram um pouco aquela ideia de polarização estritamente ideológica não só pela sua eficácia somada ao bom humor. Foram capazes de, em alguns lugares, como o Rio, unir um amplo espectro político, mostrando que, mesmo com diferenças, é possível conviver num mesmo projeto de governo.

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