SABIÁ AURORA

O primeiro sabiá da aurora. Por Antonio Contente

…sabiá da aurora … Era um trinado de volteios precisos, resvalando do mais alto para o mais baixo com precisão melódica que me tomou. Ao contrário das amargas pílulas bege de quinino que me faziam engulir …

Sabiá-laranjeira é ave símbolo da Capital | Câmara Municipal de Porto Alegre

Eu tinha uns cinco anos, quase seis, morava em Marabá, no sul do Pará, Amazônia Profunda, e contraí malária. Ou, como por lá se dizia, naqueles tempos, impaludismo. A casa era grande e, no quarto que me abrigava, havia uma janela de bom tamanho que se abria para belo quintal; a colocar ante meus olhos, no primeiro plano, os galhos de uma esparramada figueira. Os adultos que acudiam aos meus gemidos, certamente achavam que por ali, em questão de horas, minha alma sairia para o céu. Para a eternidade.

O que lembro dos dias de febres medonhas e frios siberianos é que, nos delírios pelos quais navegava, via peixes enormes saltando do rio imenso na frente da cidade; bichos da selva, onças, serpentes descomunais  apareciam no quarto; e índios das tribos altamente hostis dos Urubus e Gaviões saiam  do telhado com suas flechas, num ribombar apavorante.

Não recordo de nenhum homem cuidando de mim, a não ser o médico e meu pai; o constante eram senhoras a levar colheres com sopa à minha boca, ou a me cobrir o máximo possível por causa dos enregelamentos terríveis. Só havia um doutor na cidade, herdeiro de muitos bois e muito dinheiro, que exercia a medicina, acho eu, apenas para cumprir o que chamam de juramento de Hipócrates. Mas entendia profundamente tudo o que dizia respeito às doenças tropicais. Muito depois soube que, na calada das noites, estudava o tema com afinco.

Mesmo assim houve um instante em que as cuidadoras acharam que o espírito do pobre menino estava prestes a sair pela janela, desviando das folhas e galhos da enorme figueira. Foi de tarde, em hora imprecisa, que vi quatro ou cinco mulheres ao redor, com minha mãe em preces, os olhos a derreter. Eu ardia em febre, 40, 50, 60 graus, sei lá, mas tremendo também; com o gelado não do tempo, mas da doença. Nisso uma das idosas pega minha mão direita, faz com que eu a abra com a palma para cima, enquanto outra colega segura sobre ela, encostando o toco inferior em minha pele, uma vela acesa na ponta superior. Oravam em voz alta, Pais Nossos, Ave Marias, eu ainda não entendia direito as rezas; como, aliás, para falar a verdade, não entendo até hoje. Quando o primeiro pingo da cera derretida me queimou, senti o ardor, porém fiquei quieto. No instante em que todos se foram, só minha mãe permaneceu no quarto, os olhos líquidos que, com as lágrimas, pareciam brilhar na penumbra. Dormi, a caminhar entre estrelas; aconchego de nuvens com os muitos lençóis alvos a cobrir meu corpo, um confortante cheiro de limpeza. Conseguido graças as ervas aromáticas, da selva, que as lavadeiras de então usavam para perfumar tudo que esfregavam e torciam. Eu não sabia com clareza o que era a morte. Por isso não sentia pavor. Ainda mais com minha mãe, ali ao lado.

Ela dormia na rede armada na ilharga da cama quando abri os olhos. Amanhecia, a luz tentava entrar pelas frestas da janela larga. Súbito, sou tomado por aquele canto, aquele trinar. Era um pássaro, um passarinho, certamente estava num dos galhos da figueira esparramada. Eu já sabia os nomes de alguns emplumados, e até identificava os sons que emitiam. Mas, aquele, desconhecia completamente. Era um trinado de volteios precisos, resvalando do mais alto para o mais baixo com precisão melódica que me tomou. Ao contrário das amargas pílulas bege de quinino que me faziam engulir, remédio usual para a malária até hoje, e que não me propiciava nenhum conforto imediato, o canto daquele pássaro propiciou. Tive a impressão que, imediatamente, algo benigno se espalhava em minhas entranhas, como se vento bom num Verão de suores fartos de repente me aliviasse a pele. Sem dificuldade, como se uma força me tomasse, saí da cama para abrir a janela. Queria ver quem emitia o canto. No instante em que a claridade entrou no quarto, ouvi a voz de minha mãe:

         — O que estás fazendo, Antonio?

         — Quero ver o pássaro que canta – respondi, a voz firme de alguém que, na véspera, já estava sendo dado como morto.

         — É um sabiá, meu filho.

         — Quero ver, mãe. Parece que agora posso respirar.

Ela veio, me ajudou a escancarar a janela e, mesmo assim, o passarinho, como se estivesse a nos mirar, continuou a cantar. Paramos, olhando. E depois, quando ele levantou e se foi, minha mãe veio colocar o termômetro sob meu braço. Em minutos, sua voz se ergueu, firme, ao dizer:

         — Estás sem febre, meu filho.

Nos dias seguintes, para espanto de todos, menos do médico acostumado a tratar da enfermidade, eu só esperava as manhãs para, ao abrir a janela, poder melhor ouvir o sabiá. Se, aos cinco anos eu já pudesse experimentar pretensões, seria capaz de dizer que ele, com seus cantos, estava apenas a anunciar minha cura. E muito tempo depois eu já a ostentar alguns cabelos brancos, ao bater papo com meu pai que acabara de entrar nos 90 anos, sobre os dias do passado, ele me disse:

         — Naquela malária dos anos 40 o que te curou foi o quinino; não tenho nenhuma dúvida.

         — Pode ser – respondi – mas o que deu luz à minha alma e limpou tudo, foi o cantar de um certo passarinho; o primeiro sabiá das simples e belas solenidades das auroras…

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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1 thought on “O primeiro sabiá da aurora. Por Antonio Contente

  1. Você é um pintor.
    Sua alma lhe engana ao dizer que você só escreve. Alminha que sabe chorar de amor e rir das paixões violentas.
    Você, meu bom Antônio, deixa vir à tona em seus escritos, matizes que, sem que você perceba, vazam do seu interior e colorem suas ideias.
    Um beijo.

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