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Morador de rua? Longe de mim…Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira

Morador de rua? …Em nome de uma Sé com um visual livre de habitantes e de seus precários tetos, centenas de homens, crianças, velhos, mulheres grávidas ficam durante doze horas perambulando pela cidade…

Morador de rua? Longe de mim...

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO ESTADÃO,
 BLOG FAUSTO MACEDO, 
EDIÇÃO DE 26 DE SETEMBRO DE 2024

Todos nós estamos acostumados a tomar contato com as mais variadas situações que a vida proporciona. São eventos ligados ou não à conduta humana. Aqueles provocados pela natureza, em regra, surgem como catástrofes sem que o homem tenha como se precaver e evitar os males decorrentes. Ela, a natureza, é mais forte, e parece que ainda não percebemos.

Com relação à conduta humana, embora, como disse, no curso de nossas vidas tenha desfilado um significativo rol de estranhos e inusitados acontecimentos, nós ainda somos colhidos por novos e surpreendentes eventos.

No meu caso, aquilo que mais me causa espanto, surpresa e indignação com o ser humano são as suas opiniões e os seus posicionamentos revelados verbalmente ou por escrito. Na verdade, muitos desses pensamentos são obviamente fruto da formação cultural, do meio no qual vive e das influências recebidas. Assim mesmo, não se pode afastar a contribuição de cada qual para a formação de suas ideias. Por maior que sejam as influências operadas, o homem é dotado de raciocínio, sentimento e livre-arbítrio para analisar, valorar e escolher a que lhe pareça ser a mais adequada opção no plano das ideias e da ação concreta.

As manifestações que mais me chamam a atenção não são as que revelam tendências ideológicas, políticas, preferências culturais, literárias, musicais, clubísticas e tantas outras. Não. O chocante para mim são aquelas que traduzem posições éticas e humanitárias. São as que deveriam pairar no campo do humanismo, da solidariedade, do amor ao próximo, da tolerância e da compreensão. São declarações nesses setores que nos possibilitam conhecer o interior de alguém. Seus sentimentos, sua capacidade de amar o próximo, mas também seus preconceitos, sua insensibilidade e seu egoísmo.

…desejo lembrar que os moradores de rua são cidadãos que foram jogados ao léu e tentam sobreviver. Uma mão estendida, seja para dar alimento, seja para construir um teto, é garantir seus direitos e representará amor, e é também de amor que eles necessitam.

 

Pois bem, outro dia comentei com um conhecido sobre o absurdo projeto apresentado na Câmara de Vereadores de São Paulo que proibia que se desse alimento aos moradores de rua sob pena de pagar-se uma multa. Pasmem, esse conhecido afirmou ser boa a iniciativa, pois na medida que se desse comida os moradores não sairiam das ruas. Na sua mesquinha visão, os sem-teto assim estão por vontade própria, por livre escolha. Parece achar que tinham casas e as abandonaram voluntariamente. Levaram poucos pertences, desprezaram todo o resto que possuíam e foram habitar pontes, viadutos e calçadas das nossas cidades. E mais, se fizeram acompanhar dos filhos, dos pais, dos velhos avós e dos demais que com eles moravam ou que também abandonaram os seus lares. Todos escolheram as nossas aprazíveis ruas e avenidas, pois não viviam bem abrigados em suas moradas.

A insensibilidade, o egoísmo e a obtusa percepção da realidade por parte do meu conhecido atingem também uma parcela daqueles que jamais tiveram que enfrentar as agruras e os sofrimentos proporcionados por uma desigualdade social cruel e trágica. A amarga realidade passou longe desses privilegiados.

Muitos de nós somos dotados de senso humanitário e de solidariedade para com o próximo, eles, ao inverso, desprovidos que são desses sentimentos, possuem como foco único a si próprios. O que existe ao redor não os incomoda. Penso e cuido de mim, é o que basta.

Os sem piedade e sem amor, a não ser o próprio, imaginaram que poderiam ser eles os arruinados, os desafortunados, os sem-teto? Muito provavelmente essa hipótese nunca lhes ocorreu. É inimaginável. Eles se sentem superiores, imunes às tragédias, eleitos e abençoados pelo Criador, sendo inadmissível que trágicas ocorrências os atinjam. Talvez para não aventarem tal possibilidade pensem como o meu conhecido: retirando os ocupantes das ruas eu não corro o risco de lembrar que sou humano e, portanto, vulnerável e sujeito às amarguras que a vida pode proporcionar.

A indiferença desumana desses homens chega a causar natural repulsa por parte daqueles que se preocupam e se comovem com o outro. A impressão passada pelo meu conhecido foi a de que a retirada das ruas era o que importava, mesmo que as pessoas de lá fossem para o cemitério. Que ficassem longe dos seus olhos, mesmo que fosse para morrer de fome, porque não mais poderiam ser alimentadas.

Não chega a esse extremo, mas a Prefeitura de São Paulo adota uma providência de “higienização” da Praça da Sé que igualmente afasta da vista os que lá escolheram morar. As barracas todos os dias são desmontadas, a praça é lavada e à noite são recolocadas. Em nome de uma Sé com um visual livre de habitantes e de seus precários tetos, centenas de homens, crianças, velhos, mulheres grávidas ficam durante doze horas perambulando pela cidade, literalmente sem eira nem beira.

Ao meu interlocutor e a todos os acometidos da sua cegueira, desapiedados e carentes de humanidade, desejo lembrar que os moradores de rua são cidadãos que foram jogados ao léu e tentam sobreviver. Uma mão estendida, seja para dar alimento, seja para construir um teto, é garantir seus direitos e representará amor, e é também de amor que eles necessitam.

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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões. 

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