Moça, gato e amoras. Por Antonio Contente
… Certa manhã vi Ana e o gato na janela. Perguntei se os dois esperavam a chuva que se anunciava, com céu muito escuro para os lados do Flamboyant, o bairro vizinho ao nosso, a simpática Chácara da Barra campineira.
Quando, após o divórcio, Ana e seu gato foram morar num predinho de apenas um andar debruçado sobre a Praça das Árvores, não longe do meu tugúrio, ela nem sabia que, no local, existiam vários pés de amoras. Porém depois, ao topar com as árvores carregadas no mês propício, imaginou que, em algum tempo, acabaria colhendo um punhado das frutinhas para operar bela geleia. Disse-me isso às vésperas de uma, se podemos assim chamar, safra. Meses após, ao se aproximar a seguinte, indaguei se a guloseima sairia mesmo, ao que a moça me disse que dependeria. Indaguei se da qualidade da matéria prima.
— Não – ela respondeu – só farei a geleia se estiver amando. Não sei se você sabia, mas este tipo de doce foi criado especialmente pelos deuses para eternizar o amor. Casal que come junto não se separa nem que a vaca tussa.
Certa manhã vi Ana e o gato na janela. Perguntei se os dois esperavam a chuva que se anunciava, com céu muito escuro para os lados do Flamboyant, o bairro vizinho ao nosso, a simpática Chácara da Barra campineira. Como resposta ouvi a informação de que estava ali à espera da entrega de um novo computador que comprara.
— E para que você precisa destas modernidades? – Indaguei.
— Como a coisa nas minhas cercanias anda brava, rala, árida, tentarei arrumar um namorado pela Internet.
— Maravilha – balancei um sim com a cabeça – vou caprichar num pensamento positivo para que ele te leve a fazer uma geleia de amoras.
Dois dias depois viajei, uma viagem relativamente longa. Ao voltar, já na primeira manhã do regresso prendi meus olhos na janela de Ana, lamentando não dispor, no momento, de ninguém para perguntar como ela ia indo. Foi só dois dias depois que a encontrei na praça, com o gato. Olhou-me e murmurou como se a frase estivesse pronta há tempos em sua garganta:
— Antes que você pergunte, e eu tenho certeza que perguntará, a Internet deu certo e o nome do rapaz é Joel.
— Não sei do que você está falando – respondi.
Rapidamente recordou da manhã em que a encontrei com o gato na janela.
— Ah, sim – lembrei – caiu a ficha. Você estava esperando a chegada de um computador novo que acabara de comprar.
— Pois é, foi através dele que conheci o moço.
— Onde ele mora?
— No Rio.
— Vocês já se conhecem em carne e osso?
— Calma lá, meu caro, Roma não se fez num dia…
Daí em diante, devidamente reinserido no dia a dia do nosso pedaço, de vez em quanto perguntava para Ana:
— E aí, Roma está sendo construída, pois não?
— Estamos indo. Teclamos diariamente no trabalho de erguer a Cidade Eterna.
De fato, certa manhã ela bateu em minha casa carregando o simpático gato angorá.
— Queria que tomasse conta para mim – pediu sem rodear nada – preciso ir ao Rio.
— Joel?
— Joel – ela confirmou – ao mesmo tempo em que entregava um pacote com ração.
— Maravilha – peguei o gatinho e a iguaria.
— Conto com seu pensamento positivo.
Como isso aconteceu numa quinta-feira, na segunda ela apareceu para pegar o bichano de estimação. Como estávamos em plena safra das amoras e Ana carregava uma vasilha tomada pelas frutinhas, apontou para a praça.
— Fui colher. A garotada que tá sempre por lá me ajudou.
— Ora, ora – abri os braços – grande Joel. Só pode ser para ele a mágica geleia que vai eternizar o amor.
— Engano seu – ela respondeu – nem cheguei a conhecer esse que você citou. A geleia é pro Orlandinho. Eu o conheci a bordo do ônibus que me levava pro Rio…
No dia seguinte, tornei a viajar. Na volta fiquei sabendo que, além do gato, o rapaz, dez anos mais novo, já morava com ela no simpático apartamentinho de cuja janela dava para avistar as amoreiras. Então carregadinhas, a balançar nos meigos ventos que melhoram ainda mais os muitos encantos dos quase setembros.
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Vc sempre com suas crônicas deliciosas de ler Mas, venha cá, vc já não tinha publicado esta crônica no Correio Popular no ano passado? Ou foi uma premonição minha? rsrsrrs