O jeitinho. Por José Horta Manzano
No meu entender, a faceta mais significativa da alma nacional responde pelo simpático nome de “jeitinho brasileiro”. Todos sabemos o que quer dizer, só falta definir com precisão…
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Artigo publicado no Correio Braziliense e no blogue do autor
Todo povo tem um conjunto de características próprias que o distinguem. Assim, também no Brasil temos atributos que perpassam a população. Mas vamos examinar primeiro as características que não costumam ser associadas ao brasileiro.
O brasileiro não tem a aplicação dos povos do Extremo Oriente, em especial o japonês. De fato, um país com muita gente e pouca terra, como o Japão, exige de seus habitantes qualidades tais como paciência, comedimento, rigor e aplicação. Se cada um agisse sem se importar com os demais, o país não teria alcançado seu atual nível de civilização.
O brasileiro não tem a audácia dos colonizadores da América do Norte. Diferentemente dos que para cá vieram, muitos dos imigrantes que povoaram aquelas terras deixaram a Europa na esteira de perseguições religiosas ou políticas. Vinham com a família, de mala e cuia, com a intenção de fincar pé para nunca mais voltar. Os rigores do clima recompensaram os audazes e deixaram os timoratos na beira da estrada.
Os brasileiros não compartilham o ultraconservadorismo resignado dos povos da Índia que, neste 21° século da Era Cristã, ainda toleram viver numa sociedade estratificada em castas, sistema que ainda não implantou um elevador social. Quem nasceu na casta A nunca será aceito na B, muito menos na C. Ainda que, em nossa terra, alguns ainda torçam o nariz para o 13 de maio da princesa Isabel, felizmente não são maioria nem imprimem seu egoísmo na lousa das qualidades nacionais.
No meu entender, a faceta mais significativa da alma nacional responde pelo simpático nome de “jeitinho brasileiro”. Todos sabemos o que quer dizer, só falta definir com precisão. Tal como a palavra “saudade”, nosso jeitinho resiste a toda tentativa de definição clara e rigorosa. Será justamente porque clareza, rigor e precisão não combinam com o jeitinho.
Uma terra em que milhões conseguem sobreviver e seguir adiante com o salário de miséria que lhes toca mostra que seu povo tem poderes mágicos, inexplicáveis, quase atávicos. Em outros horizontes, uma revolução popular já teria defenestrado todo o andar de cima. (Para, em seguida, recomeçar do zero e, poucas décadas depois, retornar ao mesmo estado de coisas. Mas essa é uma outra história.)
Nosso jeitinho inclui atitudes altamente positivas. Nossa tolerância para com os que se desnorteiam é proverbial. Centenas de movimentos religiosos tratam de reintegrar no rebanho as ovelhas extraviadas. A flexibilidade de nossas atitudes tem algo de notável. Quem não tem cão caça com gato é ditado que faz sentido entre nós. O brasileiro não é de empacar se lhe falta um ingrediente para a receita: dá rápido um jeito.
Do lado menos charmoso, nosso jeitinho dá vazão a comportamentos e atitudes pouco elogiáveis. “Leis que pegam” vs “leis que não pegam” é fenômeno típico nosso. E isso nos parece normal. Todos nos conformamos com a falta de rigor e com a falta de apego à lei. Cidadãos que são condenados hoje a pesadas penas e “descondenados” amanhã não causam escândalo. Costumamos nos resignar com imprecisões da lei. Criminosos bacanas que escapam à justiça contam com nossa leniência – a frouxidão dos procedimentos legais não nos revolta.
Esse coquetel de imprecisão, elasticidade e ambiguidade se derrama e se aninha nos recônditos da alma nacional. Essa síndrome de informalidade se entranha em instâncias em que sua presença é extravagante. Ainda recentemente doutor Moraes, ministro do STF, frequentou as manchetes, na sequência de uma denúncia de que foi vítima: foi acusado de valer-se de procedimentos informais para angariar subsídios para processos que relata.
Só o futuro nos dirá se a denúncia contra o magistrado terá consequências. A bem considerar, ela é a prova de que o jeitinho nacional, que a gente imagina se restringir a castas inferiores, atravessa todos os estratos sociais e se faz presente até na cobertura deste imenso condomínio.
No regime do brasileiro, se arroz com feijão são o prato principal, o jeitinho é a mistura.
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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