Aquele suspiro de azul. Por Antonio Contente
Azul… absolutamente graciosos por causa da cor das penas. Azuis, extraordinariamente azuis como se pingos do céu tivessem sido destilados sobre elas. Depois, para mim, como se não bastasse, suís têm significado muito especial…
Devia ter contado isso alguns meses atrás, quando estive recolhido à minha choupana na ilhota no Delta do Rio Amazonas; porém, como não o fiz então, faço agora. É que a franciscana choupana, choupana é; mas houve certo momento, faz uns poucos anos, em que precisei aumentá-la. Isso porque alguns amigos de Belém, proprietários de velozes lanchas, de vez em quando se aventuram em atravessar a imensa baía que, encapelada, tem ondas de oceano, e vão lá me ver. Com eles outras pessoas os acompanham; então resolvi fazer mais dois quartos para poder alojá-los. Tais aposentos estão do “outro lado” da pequena construção, ou seja, na parte oposta ao quadrilátero no qual me guardo para dormir.
Na verdade os quartos acrescentados passam a maior parte do tempo fechados. Todavia, imagino que nunca tanto quanto agora em que, por causa de outras viagens, fiquei longo período sem ir para lá. Assim foi que após alguns dias da última chegada, resolvi abrir um dos compartimentos para verificar se estava tudo OK. Estava, os despojados móveis nos devidos lugares e, sobre eles, graças aos bons ofícios de seu Pluérices, o caseiro, nenhum resquício de pó.
Olhando em volta de repente descubro que, apesar da idade dos aposentos, eu jamais abrira as janelas. Rápido, então, resolvo fazê-lo, para dar de cara com um mundo vegetal bem diferente daquele que tenho sob o meu dormitório, que se debruça sobre o bem cuidado pomar. De repente estava diante de mim um pedaço absolutamente denso de floresta, com galhos se entrelaçando numa, digamos assim, sarabanda de variadas formas de folhas e galhos, além de flores pendentes de ramos ou penduradas lianas. Súbito, a surpresa: bem posto na segurança de robusta forquilha, e protegido pela ramagem farta, dou de cara com lindo e solene ninho.
Está claro que me incluo entre as pessoas que não resistem à visão de algo parecido sem que a coisa fique cravada no coração como, apelemos ao doce exagero, um benéfico e maravilhoso punhal. E, feita a descoberta, ainda esperei bom tempo para tentar ver que tipo de pássaro ali chocava. Porém, concluí que minha própria presença, tão próxima, haveria de espantar o emplumado morador que só poderia ver em mim, com total e irrestrita razão, um invasor dos seus domínios.
E foi justamente ao fechar a janela que notei a pequena fresta. Rapidamente coloquei sobre ela este pobre olho e, satisfeito, me convenci de que não poderia haver melhor posto de observação. Entretanto, apesar de quase longa espera, nada aconteceu.
Na verdade não vou dizer que fiquei com aquilo na cabeça o dia inteiro. Todavia, de vez em quando emergia a curiosidade de saber que morador das matas estava para ter seus filhotes bem ali diante do meu nariz. E mesmo de noite, quando deitei, uma das programações que fiz para o dia seguinte foi voltar à fresta da janela para observar, por quanto tempo fosse necessário, em busca da descoberta.
De manhã esperei o sol subir um pouco e lá fui para o meu posto de espreita. Logo de cara saquei que o ninho estava vazio, e até me espantei com o som de minha própria voz a dizer, para mim e para o nada, que não sairia dali de jeito nenhum. E, de fato, em coisa de meia hora fui recompensado. Uma vez que, como surgido do nada, começa a pular de um galho para o outro, até atingir o foco da minha observação, um especial, indesmentível, maravilhoso suí.
Ora, amigos, mesmo as pessoas que conhecem passarinhos não atribuem a tal ser voador nada de especial, pelo simples fato de que não canta. Emite, no máximo, como direi?, chilros. Contudo são absolutamente graciosos por causa da cor das penas. Azuis, extraordinariamente azuis como se pingos do céu tivessem sido destilados sobre elas.
Depois, para mim, como se não bastasse, suís têm significado muito especial, pois, junto com as pipiras, estas de penas negras, são os passarinhos que mais eram vistos nos quintais de Belém do Pará quando eu era jovem e ainda haviam quintais. Aliás, até tenho a lembrança de que, na rútila brutalidade de minhas inocentes maldades, foi para um suí que, certa vez, mirei meu estilingue de guri. Mas, graças a todos os deuses, sempre tive má pontaria…
Bom, agora o mais importante é que correm os dias daquela minha estada na amada choupana. Até que, numa outra solene manhã, antes mesmo de colocar o olho na fresta da janela, ouvi o chilrear: os pequenos suís tinham nascido. O choco dura de 13 a 15 dias.
O melhor, porém, foi que, na espionagem, vi a mamãe, azulíssima, chegando com algo no bico, talvez um inseto para alimentar os filhotes. Que dádiva, pensei, diante da cena. Bastaria isso para justificar, com louvor, a nova estada no Delta do Rio Amazonas.
Saí depois para andar pelo pomar, me sentindo leve e realizado. Já resolvera que não mais voltaria ao quarto para espionar o maravilhoso suspiro de azul a dar alimento para os infantes. Olhei para o céu, que aparecia entre os galhos e redescobri, mais uma vez, como, em certas circunstâncias, é fácil, muito fácil ser simplesmente feliz.
Como fundo musical, vindo da beira d’água, o grasnar das gaivotas.
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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