passagem - romã

A Passagem. Por Antonio Contente

… batizei como “A Passagem”. Tratava-se de uma espécie de corredor externo limitado, de um lado, pela parede da própria residência. E, do outro, por muro tomado por heras no geral e certos toques de musgos onde o vegetal não vicejava…

 Passagem - romã

Em passado quase remoto morei numa bela casa que, infelizmente, foi demolida pelo correr dos tempos e dos ventos. Era – é tão bom recordar – lugar que guardava raras particularidades. Entre elas a de possuir bom espaço que batizei como “A Passagem”. Tratava-se de uma espécie de corredor externo limitado, de um lado, pela parede da própria residência. E, do outro, por muro tomado por heras no geral e certos toques de musgos onde o vegetal não vicejava. Bem no meio havia duas maravilhosas árvores: uma amoreira de galhos quase robustos, e uma romãzeira de folhagem propícia ao pouso dos passarinhos em trânsito. Na ponta de quem vinha da rua para dentro, simpática cobertura de madeira servia para guardar bregueços; na outra, abria-se o quintal, ponto de encontro das rolinhas do bairro, sempre pelo chão a catar eu nunca soube o que. Os gatos que não tinham donos ou talvez até tivessem, ficavam de olho. Porém, “A Passagem” emanava sortilégios. A impedir que os felinos completassem caçadas.

Mas percebi que a pequena faixa não era, realmente, espaço comum quando, certa madrugada de verão abri a janela do quarto e dei de cara com um lindíssimo luar que se derramava em amplidão de quase melancolia. Súbito, no que denso manto de nuvens cobriu a velha lua, o opaco tomou conta apenas do quintal. Na Passagem permaneceram, como se estivessem impregnados na própria parede da construção, no muro ou nas duas árvores, nítidos raios de luar pendurados como colchas estendidas num varal. Diante da visão, fiquei parado, sem mover um músculo do corpo. Até o instante em que, desbloqueado o céu, tudo clareou com a constância do apaziguamento.

No correr dos tempos fui tendo outros sinais que me convenceram definitivamente de que o, digamos, corredor era de fato especialíssimo. Um deles foi que ágil casal de pombos encontrou vão entre uns móveis velhos do depósito que cito acima, e fez ninho. Tais aves, vocês sabem, formam casais que se revezam no chocar os ovos. Pois isso sucedeu lá, os borrachinhos nasceram no tempo certo, no tempo certo aprenderam a voar e se foram quando os pais já tinham ido.

Outro sinal é que os passarinhos, quando no entorno da Passagem, nunca fugiam de mim. Até, ao contrário, muitas vezes sonoros sabiás-laranjeira ameaçaram pousar em meus ombros, como se eu fosse versão nova, pecaminosa, de São Francisco de Assis.

Porém a história mais curiosa envolvendo a Passagem ocorreu quando, certa tarde, recebi a visita de íntimo amigo. Vendo a romãzeira carregada, pediu um fruto. E explicou que o queria para, com as sementes, ter componente de simpatia que vinha armando para ter de volta a mulher que o largara e por quem era total e irremediavelmente apaixonado. Pegou a romã e se foi.

Isso ocorreu pouco antes de eu ter que deixar a casa pelas circunstâncias das passagens do tempo e dos ventos. Em seguida veio a demolição, não voltei mais ao bairro, porém ainda tive notícias de um dos mais significativos reflexos da encantada Passagem.

Passaram-se alguns anos, andei viajando, e, entre idas e vindas, certa tarde, em pleno largo do Rosário, dou de cara com o amigo que me pedira a frutinha para elaborar a simpatia que lhe devolveria a fulana que amava. Está claro que essa foi a primeira pergunta que fiz.

         — Pois é – respondeu – aconteceu algo realmente grandioso.

         — A moça voltou e se atirou a seus pés?

         — Melhor. Muito melhor.

Daí detalhou que, além das sementes da romã precisava de rara erva para completar a simpatia. Foi em busca da dita cuja numa portinha em rua que passa ao lado do Mercadão. Por coincidência, ao avistar o que desejava na prateleira, linda jovem também pegava porçãozinha da coisa. O meu amigo imediatamente perguntou se ela iria fazer algum chá, e recebeu resposta desconcertante:

         —Não, estou apenas preparando simpatia para que meu marido, que me abandonou, volte. Sou louquinha por ele.

 Assustado, o fulano respondeu que sua necessidade era a mesma. Para comentar melhor a coincidência, atravessaram a rua em busca de um café.

         — E daí? – Indago, ansioso.

         — Daí que casamos faz uns seis meses e estamos felicíssimos. Acho que foi milagre da sua romã.

Não respondi, até porque seria trabalhoso explicar para ele que tudo tinha sido urdido pela misteriosa Passagem.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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