Quando morre uma árvore. Por Antonio Contente
Morreu a sibipiruna mais bonita de Campinas. Fato que, para mim, acabou por ser amargamente chocante porque ninguém, entre as três ou quatro pessoas que sabiam o quanto eu amava aquela árvore, teve a gentileza de me avisar…
Morreu a sibipiruna mais bonita de Campinas. Fato que, para mim, acabou por ser amargamente chocante porque ninguém, entre as três ou quatro pessoas que sabiam o quanto eu amava aquela árvore, teve a gentileza de me avisar. Talvez porque há certas coisas que é melhor deixar como estão para não saber como ficam. Ou porque não adiantaria nada mesmo, comigo tão distante, mandar mensagem, por singela que fosse, dando a infausta notícia. Acabei por descobrir o passamento no justo instante em que, cá chegando, fui àquele recanto da Chácara da Barra exatamente para rever o amado arvoredo. Pretendia sentar sob sua sombra amiga, não tenho nenhuma dúvida de que acariciaria o velho tronco e contaria, como sempre fiz no passado, os passarinhos; eles não apenas pousavam nos galhos, eram parte de um conjunto da plácida comunhão de ternas circunstâncias do belo.
Acho que aqui mesmo neste espaço escrevi mais de meia dúzia de textos falando da falecida. Eu a conheci em algum momento da última década do século passado, quando fui morar bem diante do seu tronco. A casa era muito boa, a companhia que comigo dividia portas, jardim e janelas não poderia ser melhor, mas, conforme descobri tempos depois foi a sibipiruna de galhos largos, copa bojuda a se avolumar aos ares das Primaveras em andamento, o agente das belas viagens que em tal época empreendi pelo mundo dos sonhos. Das suas folhas pequenas, tenras, é que recebi os melhores recados, e a coroa com que entronizei no trono a rainha de todas as singelezas, foi fundida com o ouro das pequenas flores amarelas, pepitas do céu que os deuses colocaram na forja dos meus sentimentos.
A sibipiruna funcionava, entre outras coisas, como meu Farol de Alexandria. Quando eu saia para as libações no bar do seu Fernando, pouso sutil do caminho de Santiago de Compostela de alguns boêmios, era ela que me indicava, com sua luz de solidariedade e cuidados, o rumo que deveria seguir para o bom regresso. Numa tarde de setembro, quando os últimos frios de um Inverno que não queria ceder à Primavera lambia, com gélida insistência, os contornos da rua, prometi a mim mesmo que escreveria um soneto à sibipiruna. Está claro que não escrevi nunca, pois obrar tal tipo de difícil composição poética não é a minha praia. Porém sobre a especial árvore o que a possível exalação de ternuras me permitiu em muitos instantes, fiz. E repito agora, com o coração em frangalhos, quando a surpreendi morta, sem vida. A quem, neste instante, atingem as saudades, além de a mim? Com certeza às luzes e às brisas das tardes, que não mais têm seus galhos para a composição do cenário propício à postura da sagração dos silêncios. Certamente também aos passarinhos, principalmente um bem-te-vi intimamente apelidado de O Infalível. Pois, sem erro, sempre foi ele que, nas duras chuvaradas do Verão, pousado nos espalhados galhos nunca deixou de se postar para anunciar bom tempo, com a certeza da retomada do sol. Sofrerão com as saudades as manhãs, acostumadas a depositar os primeiros raios de sol, vindos dos lados do Jardim das Paineiras, sobre as pequenas folhas embebidas de verde, orvalho, intimidade e bailarinos movimentos. Os vultos, as sombras, os sortilégios das madrugadas choram pela velha sibipiruna que se foi. Sentirão falta da cascata de prata que as luas cheias desenhavam no contorno tão bem acabado, tão bem desenhado no espaço que o continha. E as estrelas cadentes das horas mortas, agora sem bússola, procurarão, a partir do amargo momento, outros céus para cumprir a resolução dos desejos formulados pelas pessoas que vêem o pequeno traço luminoso que os astros perdidos modulam no infinito.
Por fim, em quase anoitecer da semana passada, eu e o jornalista Edmilson Siqueira, frequentador do pedaço em que viveu a mais linda sibipiruna da cidade, escutamos o Réquiem, de Wolfgang Amadeus, numa espécie de cerimônia muito particular de cerrar as cortinas sobre a árvore desaparecida. Perguntei então, ao amigo:
— Mas não havia, mesmo, jeito de salvá-la?
— Olha – ele respondeu – é mais fácil salvar almas do que salvar símbolos. Venha, tenho algo para você.
Entramos no seu apartamento num outro bairro e ele me entregou uma caixa de madrepérola com pequenos pedaços de galhos finos e folhas já secas da bela árvore que se foi, e que ele colheu antes do passamento.
— É para você sepultar no pomar da sua ilha no Delta do rio Amazonas, quando for para lá de novo.
Não sou disso, mas, confesso, ao pegar a caixinha, senti os olhos quentes. Que, como muitos sabem, indica a véspera da, se não efetiva, pelo menos probabilidade de lágrimas.
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Bom lê-lo, Contente. Valeu o lamento pela árvore que se foi, mas alegre-se com os ipês roxos em final de floração, os amarelos que estão se preparando para encher olhos e almas de alegria, os paus ferro cada vez mais altos, com os troncos mais rajados e todas as demais árvores que carregam cada vez mais pássaros nesta surpreendente São Paulo, pelo menos a que fica perto da USP, onde vivo (agora livre dos horrorosos pardais, que se foram, ninguém sabe bem porque, mas sumiram de vez da cidade).
Jaime Pinsky
Meu editor querido, mandei sua mensagem ao nosso Contente. Ele ficará muito feliz