Saudades do Futuro

“Saudades do Futuro”. Por José Paulo Cavalcanti Filho

Saudades do Futuro

 A citação do título vem do passado e tem mais de 100 anos, dita (em 1921) pelo escritor e filósofo português Teixeira de (Amarante) Pascoaes, um representante do saudosismo, em seu Cantos indecisos:

Tenho, às vezes, saudades do futuro

Como se ele já fora decorrido

Um sentimento escuro

De quem, antes da vida, houvesse já vivido.

Um futuro que vemos se formar com outros rostos e em bases distantes daquelas com que sonhamos ainda criança. Não só no campo da Inteligência Artificial – AI vejo também mudanças perturbadoras em um outro mundo, paralelo, o da genética.

E já começo lembrando que, em 1993, aumentou-se o prazo de vida de uma mosca, como resultado da inativação de redes genéticas específicas. Assim são os animais, entre eles o homem. Então se viu que o organismo humano tem células programadas para viver; e, outras, para morrer. A morte, tudo parece sugerir, é geneticamente programada. A essa conclusão chegou o médico Marco Aurélio Dias da Silva (Quem ama não adoece), pernambucano, filho do psicólogo Dias da Silva e irmão de Marluce (que, na Globo, substituiu Boni), partindo de duas constatações empíricas:

  1. A de que louco não adoece (em verdade, não precisa adoecer), nem morre de câncer ou coração, mas de por exemplo pneumonia, por dormir num chão molhado. Ou causas parecidas.
  2. E a de que as pessoas têm usualmente apenas uma doença fatal. Quem tem câncer, não tem enfarte; e, quem tem enfarte, está livre do câncer. Só que 1/3 da população mundial tem câncer e 1/3, problemas do coração. O que deveria fazer com que 1/3 dos cancerosos tivessem também problemas no coração e 1/3 dos cardíacos, câncer. Mas se não é assim que se dá, por que?, eis a questão que aquele médico se colocou.

Sua conclusão foi que o organismo humano, sabendo já estar condenado, não sentisse necessidade de fabricar outra doença mortal. Certo que com o avanço da ciência, em operações para extirpar cânceres ou colocar stends no coração, essa regrinha está mudando aos poucos. Acontece. A história começou há 4 bilhões de anos, quando foram formadas as primeiras moléculas de ácidos nucléicos; e apenas agora, depois de tanto tempo, o homem consegue interferir no processo da vida, para quase brincar de ser Deus.

As possibilidades que se abrem são amplíssimas. Infinitas, quase. Estão em curso estudos para produzir tomates com apodrecimento retardado, plantas resistentes a insetos e herbicidas, fibras de algodão naturalmente coloridas. Em pouco tempo, quem perder um braço poderá fazer outro, igual ao anterior. O mesmo com dentes. E estaremos produzindo clones de córneas (da cor que quisermos) ou rins que evitarão a procissão de desvalidos nos corredores das hemodiálises. E tudo sem riscos de rejeição, que os clones serão feitos a partir de material genético dos próprios interessados.

Curioso é que cientistas são sempre exagerados. O próprio dr. Ian Wilmunt, no Instituto Roslin (de Edimburg, Escócia), tinha um exótico zoológico particular, composto  entre outros por Megan e Morag, duas ovelhas iguais entre si; Tracex, uma ovelha geneticamente alterada para produzir proteínas necessárias ao tratamento da fibrose cística; Rosie, uma vaca que produzia leite humano; sem contar a superastro ovelha Dolly, filha de 3 mães – a primeira que deu a célula, a segunda que deu o óvulo e uma terceira que deu o útero.

O tema da Inteligência Artificial atrai, sobretudo, pelas incertezas. Enquanto, o dos clones, pelo que tem de mistério. Mesmo quando interfira em apenas um, entre os cem mil genes de que somos feitos os homens. A partir de vários desafios. Entre eles me fascina, sobretudo, a possibilidade de construir duas pessoas iguais. Idênticas. E não penso em nenhuma conhecida, já digo, penso apenas em gente comum. Anônimos, quase. Embora não fosse mal ter muitos Bach, Shakespeare, Van Gogh, Ella Fitzgerald, Leonard Cohen. Já sabendo que, quase certamente, isso nunca acontecerá, já que os clones hipotéticos viverão suas próprias trajetórias. A mente, a emoção, a dúvida, a alegria, o pensamento, o espanto e a solidão são próprias e únicas. Até lá, melhor ficarmos com Pessoa (Caeiro, O guardador …) em seu desejo de

Sentir a vida correr por mim

Como um rio por seu leito

E lá fora um grande silêncio

Como um deus que dorme.


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JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO

José Paulo Cavalcanti FilhoÉ advogado, escritor,  e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Ex-Ministro da Justiça. Integrou a Comissão da Verdade. Vive no Recife. Eleito para a Academia Brasileira de Letras, cadeira 39.

jp@jpc.com.br

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