Publicado originalmente no Boletim Informativo do autor
Chegamos mais cedo, ou mais tarde, mas somos todos imigrantes. Mesmo a arqueóloga Niède Guidon, que acredita ter encontrado no Piauí vestígios da presença dos primeiros habitantes humanos em nosso país, não fala em mais de 60 mil anos. Já a maioria dos especialistas acredita que nosso território só teve a presença de seres humanos há coisa de 15, talvez 20 mil anos apenas, muitos séculos depois de humanos povoarem outros continentes. Somos uma terra de imigrantes.
E já que chegamos há pouco, que tal tratar bem os que estão chegando agora, tangidos pelos mesmos motivos que trouxeram para cá italianos e espanhóis, árabes e judeus, alemães e poloneses, coreanos e japoneses, russos e suíços? Que motivos mesmo? Com raras exceções, a fome, o desemprego, a insegurança e as perseguições, a intolerância e a guerra. As pessoas se mudam quando algo não vai bem. Antes e agora. Sempre. Perguntem aos haitianos e sírios. Perguntem aos seus próprios avós.
Deixar de receber pessoas perseguidas, seres indefesos assolados por guerras externas ou internas é de uma crueldade sem nome. Um livro do brilhante escritor cubano Leonardo Padura (o mesmo de El hombre que amava a los perros) chamado Herejes trata de um episódio ocorrido em 1939, na cidade de Havana, quando lá chegava um navio com quase mil judeus fugidos da Alemanha nazista e conduzidos pelo capitão Schröeder para Cuba. Embora tivessem todos o visto cubano, o governo corrupto do presidente Federico Laredo Bru exigiu uma enorme compensação financeira para ficar com a carga humana do navio Saint Louis, valor que ia crescendo ao longo dos seis dias que o navio ficou atracado no porto de Havana. Sem condições de pagar o que foi exigido, e com a recusa das autoridades cubanas em receber os refugiados (que, insisto, portavam vistos), o navio acabou voltando para a Europa e grande parte dos candidatos a imigrantes morreu nos campos de extermínio nazistas.
Durante a Guerra Civil Espanhola cerca de meio milhão de republicanos (ou pessoas assim rotuladas pelos partidários de Franco) fugiram para a França (e daí para o resto do mundo). O Brasil recebeu uma parte desses refugiados, o que botou açafrão no molho multiétnico que compõe o tecido social do Brasil. Sorte nossa.
Problemas para absorver imigrantes, particularmente em uma época de aumento de desemprego? Concorrência desleal, estimulada por maus patrões que mantêm os indocumentados na informalidade, fugindo das draconianas condições que as superadas leis trabalhistas impõem ao capital e ao trabalho no país? Sim, isto acontece, mas quem vem, em geral, tem vontade de trabalhar, de vencer, de colaborar com o crescimento do país. Não por acaso nações de imigrantes como os EUA tiveram um crescimento muito maior do que velhos países europeus, fechados, geralmente com crescimento vegetativo negativo, falta de perspectivas econômicas e pequena mobilidade social (apesar de leis de proteção à natalidade).
Uma forma inteligente de absorver imigrantes é permitir que eles nos ofereçam o que possuem de melhor. Anatol Rosenfeld, brilhante homem de letras e crítico literário, foi obrigado a vender guarda chuvas assim que chegou da Alemanha, devido à sua suposta raça inferior (era judeu, como Otto Maria Carpeaux e tantos outros que tivemos a felicidade de abrigar). Brasileiros inteligentes fizeram com que o mau vendedor (era o que diziam dele) se tornasse o grande professor que foi. Nídia Lícia foi uma atriz e diretora de teatro importante no panorama cultural brasileiro, que soube tirar dessa judia italiana um talento excepcional. São Paulo tem médicos libaneses que honram as melhores tradições árabes de estudo do corpo.
E a cozinha? Aqui fazemos pizzas que se igualam às de Napoles, paellas que superam as de Valência, bacalhoadas que parecem as preparadas em Lisboa, quibes que não perdem para os de Damasco, falafel como se come nas ruas de Tel Aviv e Beirute, churrascos tão macios como os de Buenos Aires, e até sushis maravilhosos (principalmente quando não são misturados com laticínios, com os quais, decididamente, não combinam).
Se conseguirmos mostrar aos recém-chegados um país aberto, generoso, que tem regras que são cumpridas por todos, leis que valem para todos, punições que alcançam todos, mas que quer distância do terrorismo, e que não admite que mulheres sejam tratadas como objeto, teremos mais gente boa nesta mistura de que tanto nos orgulhamos.
Jaime Pinsky –É historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Por que gostamos de história, entre outras obras