Eurico Gaspar Dutra: o presidente que tinha um sonho. Por Laurete Godoy
Eurico Gaspar Dutra faleceu com mais de noventa anos de idade, fiel aos seus ideais e sua maior riqueza era o carinho e respeito dos matogrossenses que, como o Ênnio, jamais o esqueceram…
Coisas da terra são mais atraentes, quando contadas com calma, entre amigos e depois de um bom almoço. Certo domingo, a conversa foi espichando vagarosamente, como as águas do Rio Coxipó, quando deslizavam sem pressa nos quentes dias do verão cuiabano. Afinal, ao redor da mesa estavam sentadas pessoas ilustres de Mato Grosso, que se reuniram em São Paulo, para uma confraternização.
Entre elas, encontrava-se o doutor Ênnio, que viveu em Cuiabá no tempo em que Mato Grosso era um Estado grandão, que ocupava grande parte da região Centro Oeste do Brasil, fazendo limites com cinco Estados brasileiros e com a Bolívia, o vizinho país. Com o passar dos anos, de único, Mato Grosso transformou-se em três.
Em 1943 cedeu um pedaço de terra para a criação do Território do Guaporé, atual Estado de Rondônia. Em 1977, outra grande parte transformou-se em Mato Grosso do Sul, cuja capital é Campo Grande. O terceiro pedaço ficou como Mato Grosso, mantida a capital Cuiabá.
Findo o almoço, lá pelas tantas, alguém propôs:
-“Vamos lembrar casos da nossa gente?”.
Diante da sugestão, Ênnio passou a contar:
-“Eu vivia no Rio de Janeiro e, certo domingo cheguei à casa localizada próxima à Lagoa Rodrigo de Freitas, onde meu amigo, já viúvo, morava e mantinha a porta sempre aberta, para aqueles que privavam da sua amizade. A governanta recebeu-me e convidou-me a esperar, pois o dono da casa estava ausente.
-Dali a pouco ele chegou, gingando o corpo com o jeito todo seu, de oficial de Cavalaria. Fisicamente era baixo, mas trazia na alma a energia que sempre o caracterizou. Falou:
-‘Fui à missa de sétimo dia de um colega e, por isso, demorei a chegar. Peço desculpas pelo atraso, mas não sabia que você estava à minha espera. Agora que estou inativo, os amigos começaram a rarear, as visitas estão mais escassas e a vida chega até a ficar meio sem graça.’.
Pediu licença, retirou-se da sala e retornou com uma fotografia grande, envelhecida pelo tempo, onde havia um grupo de militares.
-‘Veja se você consegue me localizar.’.
Tentei em vão. A farda, o grande bigode e a mocidade impediram-me de reconhecê-lo. Após um lapso de tempo, falou:
-‘Sou este aqui! Mas quase não poderia participar desta fotografia. Todos que aqui estão, serviram comigo no Regimento de São Cristóvão. Já faleceram. Deste grupo só eu estou vivo.’.
Na sala, apenas nós dois. Ele começou a falar e com voz pausada e olhar distante, como que buscando rever as cenas que mantinha guardadas no coração, contou:
-‘Quando criança, no primário, sentei-me lado a lado com seu pai João Cyrillo e com Dom Aquino Correa – mais tarde, querido Bispo de Cuiabá, que foi nomeado com 29 anos de idade e transformou-se, na época, no mais moço bispo do mundo. Enquanto eu ouvia as primeiras lições na escola particular de Mestre Frederico, meu pensamento expandia-se e ia participar do mundo encantado do Exército Nacional. O militarismo era meu grande sonho. Atingi-lo seria a suprema glória. Imginava-me alegre, garboso dentro da farda, integrando o pelotão de frente, num desfile de 7 de setembro.
Mas como eu poderia chegar lá?
Meu pai era um modesto comerciante e minha mãe era a humilde lavadeira do quartel de Cuiabá. E eu, menino pobre, extasiava-me diante das fardas verdes e bonitas que dançavam no arame, ao ritmo da brisa que visitava a cidade constantemente. A mesma brisa que acariciava os cajueiros e goiabeiras, que me deliciavam com seus frutos.
Quando chegou a hora de ‘assentar praça’, fui fazer exame médico no quartel de Cuiabá. Dois médicos que me examinaram, após alguns cochichos disseram: -‘Você não pode ser militar, porque possui um sopro no coração.’.
O mundo pareceu ruir. Levei um soco na alma. Naquele exato momento estava no chão, totalmente destroçado, o castelo que minha imaginação construíra.
Embora profundamente decepcionado, meu espírito de luta e o desejo de concretizar um sonho de infância impediram-me de desistir. Depois de muito pensar, com a ajuda de meu pai e conselho de amigos, mudei de cidade e tentei novo alistamento no quartel de Corumbá. Ali, nada comentei e nada me foi perguntado. Com a aprovação consegui, finalmente, servir ao Exército. Segui a carreira militar e, em Rio Pardo, novamente convivi com seu pai. Além dele, Góis Monteiro e outros militares que se tornaram famosos.
Muito tempo depois, já na Reserva, certa tarde fui à Confeitaria Colombo, onde costumávamos nos reunir. Surgiu um conterrâneo nosso, acompanhado de um militar médico, que havia servido por algum tempo em Cuiabá. Ao apresentar-me, perguntou-lhe em tom de gracejo: -“Este aqui é matogrossense. Talvez você o conheça.”.
Com rapidez antecipei-me à resposta que seria proferida e a ele me dirigi prontamente, pois aquele rosto jamais saíra da minha memória: -“Nós nos conhecemos, sim. Há muitos anos este médico me examinou no quartel de Cuiabá, atestou que eu possuía sopro no coração e considerou-me incapaz para o serviço militar. Hoje concedo-me o direito de contradizer o diagnóstico que ele fez.’.
Diante da surpresa e espanto geral, completei: -‘Permita que eu me apresente: Sou o General Eurico Gaspar Dutra. Como está seu outro colega, também médico, que me considerou incapaz?”
-‘Já faleceu”, foi a resposta sem graça.
… Lembrei-me desses fatos porque, ao ser aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o projeto de lei que libera os jogos de azar no Brasil, o nome de Eurico Gaspar Dutra voltou a ser comentado nos últimos dias. …
Foi essa a história que Ênnio contou…
Eurico Gaspar Dutra era o seu conterrâneo ilustre, que viveu como nasceu – simples e modesto. Deixou como legado os feitos que o imortalizaram.
E aquele menino pobre, que olhava extasiado para o varal onde estavam penduradas as fardas lavadas por sua mãe, que foi reprovado no exame médico feito no quartel de Cuiabá, conseguiu ingressar no Exército Nacional, viveu e lutou pela instituição militar que o acolheu e honrou a farda verde oliva que povoava seus sonhos de criança.
Tanto a dignificou, que foi Ministro da Guerra (1936 a 1945) e, nesse período, junto com outros generais, organizou a FEB – Força Expedicionária Brasileira, que lutou valentemente na Itália, durante a Segunda Grande Guerra Mundial.
Eurico Gaspar Dutra faleceu com mais de noventa anos de idade, fiel aos seus ideais e sua maior riqueza era o carinho e respeito dos matogrossenses que, como o Ênnio, jamais o esqueceram.
Lembrei-me desses fatos porque, ao ser aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o projeto de lei que libera os jogos de azar no Brasil, o nome de Eurico Gaspar Dutra voltou a ser comentado nos últimos dias.
Decidi, então, compartilhar esta história, cujo personagem central é o jovem cuiabano que sonhou, acreditou, perseverou, conseguiu transformar o sonho em realidade e, como 16.º Presidente da Repúbica Federativa do Brasil, no dia 30 de abril de 1946, assinou o Decreto-Lei que proibiu a prática ou a exploração dos jogos de azar em território nacional.
Eurico Gaspar Dutra. O Presidente da República que, na infância, tinha o sonho de ser militar.
São Paulo, 23 de junho de 2024.
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Laurete Godoy – Escritora e pesquisadora. Autora de Brasileiros voadores – 300 anos pelos céus do mundo.