Não são todas as manhãs. Por Antonio Contente
… não são todas as manhãs que, ao nos cobrir, permitem que certos acontecimentos e situações remetam a voos que acariciam as essências d’alma…
Vamos falar a verdade, amigos, não são todas as manhãs que, ao nos cobrir, permitem que certos acontecimentos e situações remetam a voos que acariciam as essências d’alma. Saio do tugúrio onde vivo já a pensar num dia igual aos outros; contudo, o vento, quase frio, 17 graus neste Outono meio fajuto, sopra a anunciar que poderia haver, pelo ar, algo mais além dos aviões de carreira. Estava a postos para a caminhada, não diária, é verdade, desde a Chácara da Barra até o centro, atravessando algumas ruas do Cambuí onde gosto de reencontrar as pequenas casas antigas, que resistem. Falo das construções que preservam o jardinzinho na frente, já tenho escrito sobre isso, a resguardar edificações com porta ante pequeno pátio e nada além de uma janela. Eis senão quando, na Santo Antonio, um dos exíguos jardins me chama a atenção por exibir, num dos dois canteiros, viçosa roseira; a conter, no alto, vistosa rosa vermelha do tamanho da anunciação de um bom sonho.
Ora, amigos, como, então, não parar diante daquilo? Na manhã fresca, uma rosa que logo me levou à seguramente pretenciosa conclusão de que ali fora posta exclusivamente pra mim. Impressão essa que se solidificou quando, de repente, mais que de repente como no antigo soneto de Vinicius, passou a voar, como que saída no nada, sobre as pétalas, uma linda borboleta; total e irremediavelmente azul.
Antes de mais nada é preciso dizer que sobre os espaços que se abrem neste chão campineiro fazia tempo, muito tempo, que eu não via uma borboleta. E, ainda mais, daquela cor. Azul, um azul de céu; azul de certos olhos de linda moça que as brumas do horizonte encobriram; azul de suspiros de mar em mediterrâneas praias; ou de resoluções de estrelas ante as esperanças mansas que, no cair delas, depositamos.
E, naquela que já se desenhava como uma eterna manhã entre as que eu talvez ainda possa viver, a borboleta se colocou, íntima e inteira, para os chamamentos. Afinal um bichinho como aquele, especialmente azul, não é, pura e simplesmente, uma borboleta. Que, mesmo para as pessoas que se dedicam ao estudo delas exige que ostente o difícil título, até de se pronunciar, de lepidopterologista. E, de repente, ali eu era alguém a recordar tantas que já vira, individualmente ou em bandos. Em pleno bairro do Cambuí, me senti remetido à lembrança de que em Macondo, mítico cenário no qual se desdobra o romance “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marques, as borboletas, amarelas, aparecem como nuvens. Que, além de delimitar sonhos, podiam até levar, pelos ares, as pessoas ao universo das certezas que só podem ocorrer, sem erro, no imponderável.
Queria, na manhã que não estava sendo como tantas outras, seguir meu caminho. Mas, se a rosa que me atraiu não saia do lugar, a borboleta azul, pousada perto dela, também permanecia parada como a fazer desafio para mim; a suspirar, em tom de segredo que apenas as solidões bem esculpem: “Duvidamos, eu e a flor, que você consiga sair daqui”. De fato, a dúvida não era um desafio, sim um chamamento. Para a verdade, na qual em geral quase nunca se pensa: as borboletas são, nada mais, nada menos, uma das melhores verdades, cunhada pelos deuses, do quanto o inicialmente feio pode evoluir para algo tão belo. Pois, tudo começa com um pequeno ovo que, subitamente, vira lagarta, bichinho de quase medonho aspecto. Que ao se ver liberto come a casca do recipiente que a continha, e depois as folhas tenras que vai encontrando, nas árvores. Mais alguns dias, a tal lagarta de mau aspecto vira um casulo que, ao se abrir, liberta a beleza. Exposta ali, ante meus olhos, numa rua de Campinas, na maravilhosa borboleta azul.
Por fim, como se escancarasse uma porta pela qual eu pudesse passar, o pequeno inseto primeiro move as asas. Vai ao ar, e para um pouco, sobre a rosa. Pronto, então sobe; e, ao sumir na direção do alto, bem do alto como se fosse buscar no céu da manhã mais força para a sua cor, me deu, na ausência, a certeza da presença eterna.
Sim, amigos, há coisas que só ocorrem em certas manhãs. Lá retomo meu caminho, com os olhos atentos para outros pequenos jardins. O que me tomou era natural e certo. Pois murmurei, para mim mesmo, que bem poderia, então, ser surpreendido por um colibri (beija-flor), que também faz anos que não vejo por aqui, a sobrevoar alguma outra flor. Porém, a voz da razão apenas me recomendou que não desejasse tanto, e fosse indo.
— Espere – me disse a luz – não queira tudo para apenas uma. Vá em frente, e não perca a esperança de que algo ocorra; numa nova manhã…
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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