Dez anos sem Manoel de Barros. Por Paulo Renato Coelho Netto
Manoel de Barros foi um criador de palavras. O poeta era desenhista. Ele mesmo ilustrou vários de seus livros. Escrevia a lápis, com letras miúdas, em pequenos caderninhos de anotação. Desses que antigamente usavam nas vendas para anotar compras fiadas em mercadinhos de cidades do interior…
No segundo semestre de 2024 completam dez anos da morte do poeta Manoel de Barros. Eles nos deixou em uma manhã de primavera, às 8h05, no dia 13 de novembro de 2014. Faleceu aos 97 anos.
Excelente oportunidade para os Cadernos de Cultura, jornais, sites e televisões recolocar em pauta este que foi, reconhecidamente em vida, um dos maiores e mais premiados poetas contemporâneos do Brasil.
No poema “Retrato do Artista Quando Coisa”, Manoel de Barros escreve um autorretrato, uma espécie de mapa para nos ensinar a navegar em um universo que ele mesmo criou, de forma única e original. Um mundo para sentir mais que entender:
A maior riqueza do homem é sua incompletude. / Nesse ponto sou abastado. / Palavras que me aceitam como sou — eu não aceito. / Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. / Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. / Eu penso renovar o homem usando borboletas.
Manoel de Barros publicou seu primeiro livro em 1937, “Poemas concebidos sem pecados”.
A natureza, leia-se o pantanal, foi sua maior inspiração.
Flertou com o nada. Conferiu perspectivas inéditas à insignificância, à vida oculta nos terrenos baldios, aos caramujos, aos detritos semoventes, aos sapatos surrados, às coleções de besouros abstêmios e cacos de vidro. Segundo ele, Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia.
Na visão do poeta, Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas – é de poesia que estão falando.
Um dos seus últimos livros foi “Escritos em verbal de ave” obra que marcava a morte de Bernardo, mescla de personagem inventado e amigo real do escritor.
“Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós”, lamentou.
Entre tantos poemas sobre Bernardo, sua fonte de observação, admiração e inspiração, Manoel de Barros escreveu:
“Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada. Bernardo desregula a natureza: seu olho aumenta o poente. (Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?).
Seu olho renova as tardes. Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho: um abridor de amanhecer, um prego que farfalha, um encolhedor de rios – e um esticador de horizontes.
Bernardo é quase árvore. Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe e vêm pousar em seu ombro.”
Com estilo próprio, Manoel de Barros exala poesia até nos títulos de seus livros, como observava o amigo de muitos anos Pedro Spindola, que faleceu dia 9 de dezembro de 2022.
De acordo com Spindola, desde “Poemas concebidos sem pecado” Manoel de Barros surpreendia da capa à última poesia da obra.
Entre seus trabalhos estão: “Compêndio para uso dos pássaros” (1960), “Arranjos para assobio” (1980), “O guardador de águas”(1989), “Concerto a céu aberto para solo de aves” (1991), “O encantador de palavras” (1996) e “O livro das ignorãças” (1993).
Ignorãças, escrita dessa forma mesmo. Manoel de Barros foi um criador de palavras.
O poeta era desenhista. Ele mesmo ilustrou vários de seus livros.
Escrevia a lápis, com letras miúdas, em pequenos caderninhos de anotação. Desses que antigamente usavam nas vendas para anotar compras fiadas em mercadinhos de cidades do interior. Eram seus cadernos de rascunho.
Usava e abusava da borracha. Apagava palavra por palavra até se dar por satisfeito.
Escrevia a manhã inteira, do café até a hora do almoço, no quintal de casa. Seu escritório era uma salinha pequena, com paredes brancas que pediam reboco, cujo acesso se dava por uma escada íngreme de concreto.
Só parava para assistir o seriado Chaves no SBT.
O poeta também escreveu livros infanto-juvenis, entre os quais “Exercício de ser criança” (1999), “O fazedor de amanhecer” (2001) e “Cantigas por um passarinho à toa” (2003).
A cidade escolhida
Manoel de Barros nasceu em Cuiabá, capital de Mato Grosso, no dia 19 de dezembro de 1916.
Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, reverencia permanentemente o escritor. A cidade que ele escolheu para viver.
Prédios levam seu nome, auditórios, fundações e até mesmo o principal acesso ao Parque dos Poderes, centro administrativo do Estado, chama-se Avenida do Poeta em sua homenagem.
Ao longo desta avenida arborizada, que margeia um dos maiores parques ecológicos urbanos do Brasil, alguns de seus poemas estão dispostos em placas.
Manoel de Barros recebeu o título doutor Honoris Causa pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), em Campo Grande, e viveu para ver seu trabalho se transformar em filmes, músicas, peças de teatro, documentários, teses de mestrado, doutorado e até na “Cantata a Céu Aberto – Poemas de Manoel de Barros”, obra do maestro João Guilherme Ripper.
Desde setembro de 2022, a residência que viveu a maior parte da vida foi transformada na Casa-Quintal Manoel de Barros, em Campo Grande.
É aberta à visitação pública. Com agendamento prévio, recebe desde alunos das primeiras séries a universitários, turistas do Brasil todo e moradores locais.
É um passeio pela intimidade do poeta, onde é possível ver todo o mobiliário preservado, fotografias nas paredes, além de sua biblioteca pessoal, livros e teses a seu respeito.
Construída e idealizada pelo artista plástico Ique Woitschach, no centro de Campo Grande há uma escultura de bronze do poeta, com 1,38 metro de altura e aproximadamente 400 quilos, que o reproduz sentado no sofá de casa onde recebia visitas, artistas, escritores, amigos e jornalistas.
O poeta podia ser extremamente arredio nos primeiros contatos. Somente os muito persistentes conseguiram furar o bloqueio para serem recebidos em sua casa no Jardim dos Estados, região central da cidade.
Ultrapassada a primeira barreira, Manoel de Barros se revelava um senhorzinho simpático, bem humorado, atencioso, de cabelos brancos, boa conversa e sorriso largo. Gostava de falar tanto quanto de ouvir.
Para entrar em contato com o poeta existia um caminho que se chamava Pedro Spindola. Somente os desavisados tentavam falar com o escritor diretamente pelo telefone fixo. Nestes casos, a taxa de insucesso para um encontro com Manoel de Barros beirava 100%.
Spindola, muito amigo de Manoel de Barros, fazia o meio de campo. Jornalistas adiantavam para ele a pauta. Spindola passava para o poeta e, daí em diante, só os caramujos saberiam se ele aceitaria ou não a entrevista. Com cineastas e fotógrafos era a mesma coisa.
Fomos apresentados por Pedro Spindola em 1985. Foi em um Centro Cultural, em Campo Grande. Naquela época, Manoel de Barros, aos 68 anos, tinha pavor de aparecer em público.
Estava sozinho em um canto, longe da multidão, visivelmente nervoso.
Spindola disse:
– Manoel, este é o Paulo Renato, ele também escreve.
O poeta respondeu.
– Bem-vindo ao mundo dos sofredores.
Manoel de Barros está para Mato Grosso do Sul como Mário Quintana para o Rio Grande do Sul; Castro Alves para a Bahia; Carlos Drummond de Andrade para Minas Gerais e o Rio de Janeiro; Cora Coralina para Goiás; Paulo Leminski para o Paraná; Augusto dos Anjos para a Paraíba e Oswald de Andrade para São Paulo. Poetas que transcenderam a geografia, tornaram-se universais e conquistaram o mundo.
O poeta ganhou em 1966 o prêmio nacional de poesias com “Gramática Expositiva do Chão”. Em 1998 recebeu o Prêmio Nacional de Literatura do Ministério da Cultura, pelo conjunto da obra. Recebeu vários prêmios literários, incluindo o Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, com o livro “Poemas Rupestres”, e dois prêmios Jabutis, em 1989, com “O Guardador de Águas” e, em 2002, com “O Fazedor do Amanhecer”.
Seus livros foram publicados em Portugal, Espanha, França e Estados Unidos.
Manoel de Barros foi tema do premiado documentário “Só dez por cento é mentira”, do diretor Pedro Cezar, exibido em janeiro de 2010.
Após receber muitos nãos do escritor, pronto para arrumar as malas e deixar Campo Grande, Pedro Cezar fala por telefone para o poeta:
– Deixa para lá, Manoel. Era só um sonho.
Manoel de Barros, segundo o cineasta, fez um breve silêncio e ordenou que o documentarista levasse suas tralhas bem cedo até sua casa no outro dia.
O resultado pode ser visto na Netflix.
Serviço:
Casa-Quintal Manoel de Barros – visitas agendadas na plataforma:
https://www.sympla.com.br/produtor/casaquintalmanoeldebarros
Na Netflix: “Só dez por cento é mentira” (Documentário).
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Paulo Renato Coelho Netto – é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”.