se bandido bom é bandido morto…

Se bandido bom é bandido morto…Por Myrthes Suplicy Vieira

…um corolário necessário é o de que policial bom é policial matador, pois não? Simples questão de lógica. E também, indiretamente, um convite mal disfarçado para que a população faça justiça com as próprias mãos, sempre que possível.

se bandido bom é bandido morto…

É inescapável para quem lê jornais regularmente a conclusão de que nossa sociedade não só tolera a eliminação física dos acusados de violar as leis, desde que, obviamente, os abatidos se enquadrem na categoria PPP (pretos, pobres e periféricos), mas também aplaude a truculência policial ocasional contra outros alvos civis, como mulheres, idosos, crianças e moradores de rua, mesmo que não envolvidos diretamente com atos criminosos.

Uma das vantagens de ser velha é ter sido testemunha ocular da história, poder contar às gerações seguintes como os fatos realmente se deram. Pode-se argumentar que será sempre uma interpretação pessoal dos eventos passados, mas os detalhes relatados poderão ser confrontados com as versões de outras testemunhas, investigados em jornais e documentos oficiais da época e comprovados, ou não, por quem se interessa em desvendar a verdade.

Que ninguém se engane: as forças policiais brasileiras são legitimas herdeiras dos capitães do mato, sempre à caça de ‘negros fujões’ e absolutamente alienados do fato de que são eles mesmos oriundos dos mesmos estratos sociais, a soldo da perpetuação da desigualdade social e do racismo estrutural. Truculência policial não é, portanto, nenhuma novidade entre nós, sempre foi assim e provavelmente continuará sendo. No entanto, a brutalidade policial desmedida escalonou bem mais durante a ditadura militar. Naquela época, é bom lembrar, militares eram oficialmente liberados para atirar contra supostos “subversivos” antes de perguntar qualquer coisa. O uso de força letal, agindo de surpresa e impedindo a reação da vítima, era desculpada como inquestionável “segurança nacional”.

Mas à medida que a repressão urbana passou a ser mais capilarizada, tornou-se necessário contar com o reforço das forças policiais locais. Para isso, oficiais do exército foram designados para treinar policiais militares, especialmente os integrantes dos batalhões da Rota. E, claro, foram transferidas a ela as mesmas prerrogativas de “excludente de ilicitude”. Tortura para obter confissões e delações e execuções sumárias acabaram se tornando práticas corriqueiras.

Mais ou menos na mesma época, por volta do final dos anos 70, um fato de grande repercussão nacional aconteceu em São Paulo: um garoto de 12 anos, em situação de rua, que havia roubado uma corrente de ouro de um comerciante da Praça da Sé foi perseguido e morto por um bando de lojistas. Na sequência, o corpo do garoto foi abandonado sobre um banco da praça. O então arcebispo metropolitano, Dom Paulo Evaristo Arns, inconformado com a desproporcionalidade da reação, resolveu organizar uma procissão, clamando por uma atitude mais cristã de respeito à dignidade de toda pessoa humana. A iniciativa acabou dando início ao que se convencionou chamar de Movimento dos Direitos Humanos.

… Se compreensível por um lado (psicologicamente é mesmo difícil admitir que sejamos capazes de atos irracionais de extrema perversidade), não há como esconder o lado execrável da ideia de que bandido bom é bandido morto: desqualificar a condição humana de adversários é pré-requisito para nos tornarmos tão ou mais insensíveis quanto o mais insensível dos criminosos…

Imediatamente, capitaneadas por apresentadores de bizarros programas policiais televisivos, milhares de vozes se fizeram ouvir no Brasil todo, associando maldosamente o movimento de Direitos Humanos à “defesa de bandidos”. Ficou famoso desde então o refrão de que a sociedade e a segurança pública deveriam se concentrar apenas na defesa dos “humanos direitos”.

Nunca ocorreu aos detratores de Dom Paulo que, por mais bárbaro que seja o criminoso, ele continua sendo um ser humano. Está aí uma verdade difícil de ser digerida até hoje. Se compreensível por um lado (psicologicamente é mesmo difícil admitir que sejamos capazes de atos irracionais de extrema perversidade), não há como esconder o lado execrável da ideia de que bandido bom é bandido morto: desqualificar a condição humana de adversários é pré-requisito para nos tornarmos tão ou mais insensíveis quanto o mais insensível dos criminosos.

Pouquíssimos brasileiros entendem que não é função das polícias julgar da culpa ou inocência de ninguém e, menos ainda, a de matar. Mesmo quando recebidos a tiros, ainda resta aos agentes policiais a opção de atirar na mão que segura o revólver ou nos pés do agressor para evitar uma fuga. Mas atirar preferencialmente em áreas vitais infelizmente continua sendo uma prática explicitamente valorizada por muitos comandantes militares, governadores e políticos em geral.

Um pouco de conhecimento de psicologia humana não faz mal a ninguém: quais sentimentos você acha que brotam no peito de parentes e amigos dos que foram mortos em operações no interior de comunidades pobres de periferia, sejam eles inocentes ou não: respeito, medo ou ódio da PM? A despeito dos inúmeros relatos de tiros pelas costas, inocentes desarmados atingidos, invasão de residências sem mandado judicial e descaracterização da cena de crimes, o ativista dos direitos dos humanos direitos e governador de SP não vê razão para se indignar com as macabras estatísticas das Operações Escudo e Verão. Afirmar que “não tem bandido na polícia” é muito mais do que simples profissão de fé, é projeto de poder.

Que ninguém se engane: Guilherme Derrite, seu atual secretário de segurança pública, foi alfabetizado na mesma cartilha de Netanyahu: para cada um dos nossos abatidos, ao menos dez dos deles deverão pagar com a própria vida. E eis-nos de volta aos tempos de Átila, o Huno, e do primeiro código civil da história da humanidade: olho por olho, dente por dente.

_________________________

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

 

1 thought on “Se bandido bom é bandido morto…Por Myrthes Suplicy Vieira

  1. Myrthes ;
    Não te conheço pessoalmente, mas gostaria que você lesse isto como se fôssemos amigos desde há muito : você não é « velha », minha cara ! Tire isso da cabeça. Se você fosse, eu também seria – o que não é verdade. Tenho 63, e Annik, a netinha que minha filha de 29 me deu vai completar 3 meses na próxima semana. Viu ! Eu não posso ser « velho » ! Tenho uma netinha e meia dúzia de cãezinhos ! Em companhia assim (e nem contei minha mulher linda 10 anos mais nova que eu), só é « velho » quem deseja sê-lo. Aqui em casa, festejamos aniversários, sempre com muitos amigos por perto, porque são boas ocasiões para reunir pessoas queridas, comer e beber juntos, e na maioria das vezes o bolo nem velas tem. Então deixe-me te dizer uma coisa : teu relato sobre tempos sombrios desse país não é algo que você diz por velhice : você diz apenas porque sabe, pode e deve dizer ! Torna o mundo melhor ao dizer, porque alguém não sabe e precisa saber, mas isso nada tem a ver com idade ou com experiência empírica pessoal, até porque a gente não narra apenas aquilo que vivenciou ; a gente também narra o que ouviu dos outros, que ouviram de outros e outros, and so on… E a gente também narra o que leu, estudou, aprendeu. Não precisa ser « velho » pra isso. Minha filha, por exemplo, não viveu aqui os anos da « Revolução Tranquila », mas estudou tanto, quando de seu doutorado na universidade aqui, que pode discorrer de cátedra sobre o tema, e o faz quando escreve sobre. E, acredite, conheço gente da minha idade que absolutamente nada tem a dizer. Conheço pessoas ainda mais antigas, de 70, 80, que são apenas nulas ; provavelmente não significaram nada em suas próprias vidas. Já nasceram obsoletas. Nós, ocorra o último suspiro em que idade ocorrer, vamos sair do mundo mais vivos que muita gente que mal terá nascido. Os conceitos que valem não são de juventude ou velhice ; isso diz quase nada. O que vale mesmo é a relevância, o papel que buscamos nas nossas próprias vidas, e nas dos outros. Vá por mim : você não é « velha » ! Ter algo a dizer provavelmente é a única coisa que importa na vida de alguém. E quem importa nunca é « velho »…

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assine a nossa newsletter