JULGAMENTO

Mudou o sistema ou mudamos nós? Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira

Mudou o sistema? Como advogado há 54 anos, sinto-me por vezes desnorteado com as mudanças ocorridas no âmbito da Justiça em geral e no comportamento dos seus integrantes…

juiz - SISTEMA

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O ESTADO DE S.PAULO

OPINIÃO, ESPAÇO ABERTO, 7 DE FEVEREIRO DE 2024

O sistema ao qual me refiro é o de justiça, com a necessária inclusão das atividades de juízes, advogados, promotores e de seus demais integrantes.

Inusitados acontecimentos relacionados ao Judiciário têm surpreendido não só aqueles que lhe são próximos, como a sociedade em geral, especialmente em razão da incompatibilidade desses eventos com uma cultura que sempre norteou as carreiras jurídicas.

Eu não ousaria opinar a respeito do trabalho dos profissionais em suas respectivas áreas. Decisões, arrazoados, sustentações orais e demais atividades executadas nos processos não constituem o foco deste singelo escrito. Eu quero, sim, tecer algumas considerações sobre variados fatores que marcam as funções ligadas à distribuição de justiça atualmente.

Como advogado há 54 anos, sinto-me por vezes desnorteado com as mudanças ocorridas no âmbito da Justiça em geral e no comportamento dos seus integrantes. Conceitos, noções e princípios que direcionavam os caminhos do Poder Judiciário, da advocacia e do Ministério Público alteraram os rumos que eram tradicionalmente seguidos. Os agentes do Estado incumbidos de dizer o direito para elidir os conflitos e manter a paz e a harmonia em sociedade, os exercentes da capacidade de postular em nome de outrem e os fiscais do cumprimento da lei, com as devidas ressalvas, não mais estão sendo orientados pela bússola que sempre imprimiu os rumos adequados dessas imprescindíveis atividades.

Havia um rol de normas e de parâmetros seguidos à risca como verdadeiras cláusulas pétreas, imutáveis, que davam sustentação às três instituições que constituem as bases do Estado Democrático de Direito. Não me refiro à conduta moral e ética. Eu me refiro, sim, às alterações sofridas nas atitudes e nos posicionamentos que embasavam o exercício das funções jurisdicionais.

Uma questão relevante é a vocação, que sempre se apresentou como um imperativo daquele que se propunha a julgar seus semelhantes, na hipótese da magistratura. Parece-me que ter ou não vocação para decidir aspectos fundamentais da vida de outrem, como liberdade, família e patrimônio, não mais constitui uma preocupação primordial a inúmeros dos que prestam concurso.

O fundamental questionamento é saber se o concursando deseja exercer aquele verdadeiro sacerdócio ou se apenas almeja uma posição que lhe dê estabilidade profissional.

O anseio pela segurança pessoal e familiar, em detrimento da vocação, vem igualmente atingindo muitos advogados que se inscrevem para ingressar na magistratura pelo Quinto Constitucional. São colegas que se esquecem de que a judicatura não é emprego.

O juiz, embora exerça uma função pública – qual seja, a de distribuir justiça –, não é um funcionário comum, é um servidor diferenciado, pois as suas atribuições estão intimamente ligadas aos destinos de qualquer cidadão que bate às portas do Poder Judiciário para a obtenção de um bem de vida.

O homem é animal gregário que nem sempre tem seu interesse satisfeito, quando este se choca com um interesse alheio que lhe é antagônico. O Estado assumiu para si a incumbência de pôr fim a esse conflito por intermédio de um agente, que é o juiz de Direito.

… Chegou o momento – e que não seja tardio – de saber quem mudou: nós ou o sistema…

Assim, a vocação do magistrado consiste na plena consciência que deve ter da relevância de suas funções. E estas, necessariamente, vêm acompanhadas de mudanças no seu modo de pensar e de agir.

Um outro aspecto de notória relevância diz respeito à discrição, que sempre foi uma característica marcante dos julgadores. As opiniões e as aparições públicas, até alguns anos atrás comedidas e parcimoniosas, estão se tornando corriqueiras, de uma assustadora e nociva frequência.

Na realidade, o protagonismo midiático está atingindo alguns juízes, advogados e promotores – fenômeno ocorrido especialmente após ter tido início o televisionamento das sessões dos tribunais superiores.

Eles passaram a ser atores da cena judiciária, quando, na verdade, deveriam abster-se do humano e compreensível desejo de ter sua imagem exposta. Tal exposição é incompatível com as suas relevantes missões. Não emitir opiniões políticas ou tecer comentários sobre eventos ocorridos em sociedade e não notadamente prestar declarações sobre processos em andamento constituem limitações inerentes e imprescindíveis a todo e a qualquer juiz, do de primeiro grau até o integrante das cortes supremas. Advogados e promotores igualmente deveriam abster-se de comentários públicos sobre seus casos.

A excessiva exposição em eventos sociais, entrevistas, palestras e debates está colocando os integrantes do sistema de justiça como alvo de comentários, críticas e até julgamentos exatamente porque esses operadores transformaram o processo que é público em processo para o público.

Chegou o momento – e que não seja tardio – de saber quem mudou: nós ou o sistema. Talvez a resposta seja “todos mudamos”, mas é hora de direcionarmos essas transformações em prol da melhora do sistema de justiça em nosso país.

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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões.

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