O santo dos telhados. Por Antonio Contente
… Para certas pessoas ele era, por sua cultura, um sábio. Para a maioria da população da pequena localidade, um santo. Para mim, sempre foi as duas coisas…
Mais do que água, é a essência do tempo que escorre sobre os telhados antigos. Há em torno deles o solene silêncio que ficou marcado nas coberturas que perderam a cor sob incontáveis sois e, em cada beiral, se renovam as marcas da contenção dos voos dos pássaros que chegam; e a liberdade dos que partem no rumo das ilhas. Vistos do alto, há uma simetria no assimétrico de cada um para a oferenda das chuvas. E se fincaram na paisagem há tantas luas como se tivessem nascido ali brotados da própria terra por terem sido semeados, grãos mágicos espalhados por mãos milagrosas.
Pairam bem acima de tudo, nas noites de luar intenso, os dois torreões da igreja barroca que se mantêm de pé escorados pelos pulsos dos anjos. Nas frestas, nas rachaduras entre os capitéis, vicejam tufos de vegetação. Chegaram do alto plantados pelos passarinhos, talvez pelos bicos das gaivotas que se postam para observar a corrente do rio que busca o mar; ou ainda, quem sabe?, simplesmente pelos ventos, tão densos nas horas em que a maré sobe. Afinal, são sopros que passam antes pela floresta, que removem das sumaumeiras os flocos de neve que contêm o sêmen da vida, que passam por acácias das quais pendem pepitas de ouro, e também pelos hibiscos que roubaram o rosado das auroras.
Este é o cenário, agora entra nele o personagem. Na primeira vez em que o vi, num tempo de horas plácidas, pensei que fosse um fantasma. Acompanhei seus passos entre as pequenas alamedas do jardim cercado por sacadas que viram o nascer de mais de três séculos. Era de madrugada e o homem, com uma tesoura de jardineiro na mão, parava junto das plantas para a poda, com carinho e método. Por instantes, tive a impressão — mais do que acariciar folhas e flores, falava com elas. E, diante de um tronco esbelto, alto, apontava para cima, como se recomendasse aos galhos que deveriam proteger, com redobrado empenho, os ninhos dos sabiás. Aliás, este é um capítulo à parte. Em nenhum outro lugar do mundo poderia haver tantos sabiás, esta primorosa síntese do que seja conter melodias. Cinco horas da manhã, a primeira luz ainda nem navegou pela calha do rio imenso, e eles já cantam. O que só fazem novamente, com intensidade, ao entardecer. Não, a gente quase nunca os vê, mas uma tarde vi. Pairava, solene, acima de um beiral. E cantou para mim, certamente por me ter confundido com um santo. Não pela inexistente aura de ausência de pecados. Mas pela barba que me dá essa máscara de apóstolo em férias. Sim, mas eu falava no personagem que entrou no cenário, Frei Haroldo da Beira. Nunca soube, até porque nunca perguntei, se o sobrenome se referia às barrancas do rio amazônico. Ou à região de Portugal onde o sacerdote tinha nascido, e que é também o chão dos meus antepassados maternos.
… Cinco horas da manhã, a primeira luz ainda nem navegou pela calha do rio imenso, e eles já cantam. O que só fazem novamente, com intensidade, ao entardecer. Não, a gente quase nunca os vê, mas uma tarde vi. Pairava, solene, acima de um beiral. E cantou para mim, certamente por me ter confundido com um santo. Não pela inexistente aura de ausência de pecados…
Nunca, durante os últimos muitos tempos, deixei de estar com Frei Haroldo pelo menos uma vez por ano, às vezes mais. Afinal, cada um dos telhados que me encantam tanto, cada uma das paredes que resistem à umidade de incontáveis invernos (a estação das chuvas na Amazônia Profunda), cada folha, cada flor do verdadeiro Jardim do Eden que viceja na frente da igreja, cada canto dos mágicos sabiás que carregam nos bicos as sonoridades das manhãs, cada coisa linda que existe ali, não existiria se não fosse o empenho e o amor do nosso frade. Lembro de uma tarde, acho que nos anos setenta do século passado em que, entrando com ele na igreja construída em mil seiscentos e qualquer coisa, me admirei com a conservação de um púlpito esculpido em pedra com algumas partes em mogno.
— Deste eu cuido de modo especial – o frei me disse – é meu filho do coração.
Depois explicou que ali, exatamente ali, pregara o padre Antonio Vieira, o dos Sermões, quando precisou fugir de Portugal e andou pelo Brasil. Aliás, nosso Frei Haroldo se tornou uma das maiores autoridades na obra do famoso pregador, tendo produzido sobre ele um ensaio primoroso que, infelizmente, só foi publicado em Portugal, pela Universidade de Coimbra. Também escreveu sobre a fauna e a flora da Amazônia paraense, além de um belo volume contando aquilo que chamou de “Reflexão Musical em Prosa”; é sobre o sacro na obra de Johann Sebastian Bach. Como se não bastasse tocava órgão, piano, flauta e violino. Isso sem falar de ocarina. Santo Deus!, quantas pessoas existem, neste mundo, que tocam ocarina?
Numa das ultimas vezes em que estive com frei Haroldo ele já havia entrado na casa dos noventa, porém sempre ágil, vital, a cuidar do seu mundo barroco. Na ocasião, à tarde, tomando um esplêndido refresco de tucumã na casinha nos fundos da matriz, onde morava, ouvimos, num modesto “três em um”, Mozart, Albinoni, Corelli.
Assim foi que, faz aí uns dois anos, mal chegado ao Pará fui em busca do meu frei e seus telhados. Não, não o encontrei, dias antes, beirando os 100 anos, ele tinha morrido. Está sepultado na própria Matriz, num nicho à direita da nave principal. Parei diante da lápide, fechei os olhos, a pensar o quanto seria bom se algum sabiá começasse a cantar. Pois eles sabem orar muito melhor do que eu.
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PS – Frei Haroldo da Beira exerceu seu sacerdócio por mais de setenta anos numa pequena cidade do interior do Estado do Pará. Cuidou dos pobres, dos enfermos, dos desvalidos com a expressão mais luminosa da solidariedade. Que estendeu também a vários perseguidos pelo regime militar, muitos dos quais, fugidos de Belém, escondeu. Para certas pessoas ele era, por sua cultura, um sábio. Para a maioria da população da pequena localidade, um santo. Para mim, sempre foi as duas coisas.
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Maravilhoso. O Contente é um ser iluminado. Espero por suas crônicas todos os sábados.
Que lindo o seu texto sobre esse padre tão especial,amigo Antonio!A sua infância na Amazônia foi encantada, e você consegue nos mostrar com todo o seu talento.