O momento pós-eleitoral de agora é o mais agitado do período de redemocratização. Estradas bloqueadas, multidões diante dos quartéis, cenas de regozijo com a falsa notícia da prisão de Alexandre de Moraes, preces aos militares e até aos alienígenas, com quem tentam se comunicar com a lanterna dos celulares. Neste contexto coloca-se a difícil tarefa do novo governo: pagar suas dívidas de campanha com os mais pobres e reconciliar o País.
Para atender aos mais pobres, o primeiro problema é dinheiro. No Orçamento que o governo Bolsonaro apresentou não estava previsto o Auxílio Brasil de R$ 600, mas só de R$ 405. Além disso, faltam recursos para o Farmácia Popular, a merenda escolar, o aumento do salário mínimo. A saída é estourar o teto de gastos, já muitas vezes furado pela gestão Bolsonaro.
Uma forma suave de conseguir esses objetivos seria não apenas criticar o teto de gastos, mas transitar gradualmente para uma nova âncora fiscal.
De modo geral, a simples e justa crítica ao teto de gastos aparece como se não se admitisse nenhum tipo de âncora fiscal, como se fosse possível viver num mundo de gastos ilimitados.
Algumas novas referências para limitar os gastos, como índice de crescimento e evolução da dívida, já estão sendo colocadas na mesa.
Qual a vantagem de atender aos pobres e, simultaneamente, não criar confrontos verbais com o chamado mercado?
Teoricamente, não haveria problema em criticar ou, mesmo, desprezar o mercado sob o argumento de que é um espaço em que se pensa apenas no interesse dos mais ricos. Mas isso é apenas uma bravata.
O trânsito mais suave para uma nova âncora fiscal, sem trair as promessas de campanha, seria melhor, diante da conjuntura política ainda conturbada pela extrema direita.
A tarefa de reconciliação nacional não é fácil. Estivemos diante de manifestações de massas que devem declinar, por algumas razões. Uma delas é o fato de não alcançarem seu objetivo, que é anular as eleições. A outra é de ordem conjuntural: dificilmente algum movimento dessa natureza sobrevive ao impacto de uma Copa do Mundo seguida de festas natalinas. Depois do AI-5, o ato que reforçou a ditadura, em 13 de dezembro de 1968, fizemos inúmeras tentativas de protesto, todas dissipadas pelo espírito natalino.
O que às vezes acontece quando manifestações de massa refluem é o surgimento de pequenos grupos radicais. Isso já pode ser observado em alguns pontos de Mato Grosso e de Santa Catarina. Em Lucas do Rio Verde (MT), a instalação de uma concessionária da estrada foi incendiada. Imagens de caminhões ardendo em fogo foram vistas na região de Sorriso (MT). Ataques armados e sequestros de caminhoneiros foram registrados em Santa Catarina. Enfim, o declínio das manifestações, como em outros momentos da História, abre espaço para os grupos de vanguarda que tentam manter acesa a chama do protesto.
…Se observamos o candidato derrotado, vemos que há um silêncio na superfície, mas movimentos na penumbra. Interessa a Bolsonaro manter a inquietação de seus eleitores. Seu vice, Braga Netto, andou pronunciando frases enigmáticas…
Ao analisar friamente essa situação, creio que a tática correta é isolar os grupos armados e evitar que novas manifestações brotem nas ruas. Qualquer movimento futuro que abale a economia artificialmente, provocando queda da Bolsa e alta do dólar, não provoca diretamente, mas estimula a rebelião.
No curto prazo, há outra tática importante, não muito utilizada: a de respeitar os derrotados, argumentar pacientemente com eles e, quando isso for impossível, optar pelo silêncio.
Não tenho a pretensão de dizer como as pessoas reagem, mesmo porque elas exercem uma exuberante liberdade. Mas frases do tipo “perdeu, Mané” contribuem para o ressentimento e aprofundam o abismo entre duas visões de Brasil.
Se observamos o candidato derrotado, vemos que há um silêncio na superfície, mas movimentos na penumbra. Interessa a Bolsonaro manter a inquietação de seus eleitores. Seu vice, Braga Netto, andou pronunciando frases enigmáticas, dando a entender aos manifestantes que deveriam persistir, pois algo importante estava por acontecer.
Valdemar Costa Neto, presidente do PL, conseguiu uma auditoria para questionar as urnas eletrônicas e tentar com isso botar lenha na fogueira. E um ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Augusto Nardes, aparece num áudio vazado dizendo que há grande inquietação nos quartéis, sugerindo também que um golpe militar está a caminho.
A análise do natural fluxo e refluxo do movimento de massas indica a queda progressiva das manifestações de rua. Mas o desespero e a vontade de perturbar estão presentes e devem ser contados como um fator duradouro nos próximos quatro anos.
Num quadro tão difícil, o ideal seria que o novo poder levasse em conta suas palavras e, se possível, evitasse improvisos, usando ao máximo a leitura de textos curtos. Embora seja uma experiência diferente, vale a pena observar como Bolsonaro encantou seus radicais, dizendo sempre coisas que os animavam, independentemente de avaliação cuidadosa da conjuntura. Resultado: é o primeiro presidente que não se reelegeu, na história da redemocratização.
Na internet, há uma piada recorrente com diferentes situações e um só texto: recorra aos profissionais. A política brasileira tem alguns profissionais, no bom sentido, e a missão que se abre depende muito deles.
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Fernando Gabeira*– é escritor, jornalista e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro. Atualmente na GloboNews, como comentarista. Foi candidato ao Governo do Rio de Janeiro. Articulista para, entre outros veículos, O Estado de S. Paulo e O Globo, onde escreve às segundas. Programas especiais – reportagens – para a GloboNews. Semanalmente, o podcast Fala, Gabeira! – no YouTube
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