Ansiedade, no momento teu nome é Brasil. Por Marli Gonçalves
Ansiedade, o Mal do Século? Ataca agora todo um país e, por incrível que pareça, é a única coisa que nos une a todos, em momento eleitoral tão dividido, violento, crucial. Me diz se não está aí também contando os dias, horas, minutos para acabar com essa expectativa, para mim uma das maiores do período democrático, pelo menos do que vivi.
Palpitação, tensão, nervosismo, até medo do que pode acontecer nos dias e horas que faltam para aquele final de tarde, começo de noite, quando os resultados começarem a ser divulgados, e depois disso.
De um lado, esse de cá, tanta vontade de se livrar desse bagulho (e de sua família e asseclas) o mais rápido possível e enquanto é tempo, e depois de viver aflições e ouvir desrespeitos praticamente todos os dias dos últimos quatro anos, que estamos até meio doentes. Brigamos entre nós quando deveríamos estar todos juntos em uma só direção e objetivo, sem divisões, como as que inclusive nos causaram todo esse desgosto.
É o que temos, sei bem que não é, sem dúvidas, o melhor dos mundos, mas é preciso decidir o mais rápido possível para que se aplaquem esses temores, ou melhor, para que possamos caminhar com mais segurança no caminho que as urnas traçarem, seja qual for, e logo, juntando os cacos. Teremos muitas coisas para resolver e necessitaremos de estar fortes para defendermos a ameaçada democracia custe o que custar. Hora da união da oposição. Seria maravilhoso que essa pendência principal fosse decidida logo, para acabar com a agonia e esclarecer quais serão as próximas fases do jogo.
Essa é a montanha-russa da política, movimento aparentemente normal, se estivéssemos vivendo momentos normais, o que não é decididamente o caso. Mais uma vez, por exemplo, as eleições legislativas, tão importantes quanto a decisão para os cargos de presidente e governador, estão sendo escamoteadas e vemos apenas aquelas pessoas aparecendo com frases curtas e em geral sem sentido, ou apenas em fotinhos e acenos. Aqui em São Paulo tem candidato ao Senado apelando para o seu cachorrinho que promete levar para a Brasília, tem astronauta perdido no espaço, cada um de espantar. Pouco nos atemos, por exemplo, não só ao rol de propostas mirabolantes, mas a aquelas letrinhas miúdas que trazem lá embaixo o nome de suplentes, na maioria francos desconhecidos e que poderão, como tantas vezes já mostrou a história, serem os que acabam sentados lá nas cadeiras do Congresso. Por momento assim na eleição anterior, além de acabarmos governados por um perigoso sem-noção, elegemos algumas das piores legislaturas de todos os tempos no Congresso e nos Estados. Aliás, anda perdido por aqui até um siderado candidato ao governo do Estado que não sabe nem onde ele próprio vai votar. Sem um Waze nem para casa volta.
Tudo isso é o caldo grosso da política. Fatos que criam em todos essa ansiedade, faz ficar esperando resultados de pesquisas, tem tomado o tempo de muitos nas redes sociais se atacando entre si, insuflados pelo ódio reinante e desgastante cultivado nos últimos difíceis tempos que vivemos, pela pandemia que acabou por dominar nossa atenção, de um lado, e do outro, ver o quanto eles aproveitaram para se armar, tomar as cores da bandeira, disseminar mentiras absurdas, tentar destruir a imprensa, atacar e desmerecer conquistas fundamentais.
Enquanto isso, vamos nos distraindo um pouco tentando relaxar. As farmácias vendendo calmantes como nunca. “Influencers” surgindo de todos os lados e poucos sabem como se criam, mas sabemos o que comem, o que vestem, onde gastam, com quem transam. Ideias de desafios – alguns pegam, como esse último de postar foto com 13 livros de lombada vermelha, que – tudo bem – mas adoraria exatamente entender o sentido, além do vermelho e do 13, para virar voto. Artistas se mobilizam em fotos, vídeos, músicas e até hinos, como o do inominável, que lista em mais de 13 minutos os absurdos do bagulho – tantos foram que o vídeo ficou mesmo bem longo.
Legal. As mãos surgem, de um lado apontando, fazendo arminhas; do outro, transformando as tais arminhas no L, de Lula, o líder político ressuscitado desse país que se distraiu e esqueceu de formar novos quadros sérios e fortes o suficiente para encarar a caneta desse atual presidente apenas ignorante, que acha que é de direita porque ouviu dizer por aí, que subiu ao poder e dele quer se apropriar. Ainda acha que pode vencer jorrando impropérios e comprando com migalhas exatamente quem mais vem sofrendo com toda a situação. E não é só de ansiedade, mas de fome, de falta de saúde, trabalho, moradia, saneamento, segurança, já soterrados por dívidas.
Esses que ninguém engana, de mãos calejadas.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br
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Aqui no Rio, Calígula ficaria em dúvida: Incitatus ou Romário?
Calígula ficaria em dúvida: Incitatus ou Romário?
Desde há mais ou menos metade de um ano, saí definitivamente do Brasil, após incontáveis idas e vindas entre o Brasil e o Canadá, onde trabalho hoje, assim como minha mulher e minha filha – que, aliás, nasceu aqui há 26 anos. É claro que as razões mais sólidas dessa mudança continental que vale uma vida (na verdade, várias, contando com as dos cachorrinhos…) são claramente pessoais, mas há também aquelas acessórias, que, no entanto, muito ajudam a bater o martelo. A este título, posso sem dúvida afirmar que as perspectivas do Brasil neste momento de psicopatia social bolsonarista muito nos levaram a considerar com mais senso de compromisso e urgência a decisão que tomamos. Et enfin nous sommes partis pour toujours… Abandonamos nosso torrão natal para viver num lugar mais humano, menos selvagem. Não posso deixar de considerar que, àqueles que permanecem no Brasil, os dias que virão serão talvez mais duros que os atuais. Bolsonaro deixará a seu sucessor um país devastado pela estupidez mais banal e pela sua raiva natural, com a economia de 2023 já comprometida, o meio ambiente semidestruído, a civilidade liquidada, a institucionalidade arrombada, a convivialidade pública zerada. Por isso, creio que, neste momento que antecede ao primeiro turno desta eleição – de longe, a mais importante que o país já teve -, cumpre notar que tipo de compromisso se impõe aos brasileiros que prezam pela democracia.
De longe, mas como um brasileiro nostálgico que sempre serei, tomo a liberdade de escrever hoje aqui. Sei que não serão muitos os que concordarão comigo, mas, apelando ao espírito cívico dos que frequentam este espaço democrático, quero deixar algo para uma reflexão. Como todos hoje no Brasil admitem, Bolsonaro parece fortemente inclinado a tentar golpear as próximas eleições, particularmente no segundo turno, se suas perspectivas não se lhe mostrarem muito promissoras. De meu ponto de vista, por isso mesmo, o Brasil precisa tentar resolver esta eleição presidencial no primeiro turno – caso em que o capitão disporia de menos argumentos para questionar e pôr em risco um processo que também teria servido à reeleição de boa parte de seus sequazes que apodrecem o Congresso Nacional. Conte-se também a desmoralização que, imposta a ele já no primeiro turno, tenderia a inibir parte das iniciativas golpistas de seus devotos menos irracionais. Se assim não for, no entanto, as semanas que decorrerão até o segundo turno serão incrivelmente inseguras, abertas a todo tipo de aventura golpista, eventualmente sangrenta, com a banda podre militar bancando a desgraça, talvez fechando tribunais, certamente acuando oposicionistas na base da intimidação armada e mais sabe-se lá o quê. Assim, o que estou a sugerir aqui – e, creiam-me, contrariamente a meu próprio comportamento eleitoral até hoje – é o que alguns chamam de ‘voto útil’, nome dado àquele que é, de fato, o menos narcisista, o menos nefelibata, o menos idealista, porém o mais politizado e maduro dos votos. Por certo, se ajudar o Brasil a se livrar do ideário fascista que ora o assombra, terá sido o mais útil de sua história. Vale enfatizar que a ameaça golpista nunca foi, desde os anos da ditadura militar, tão clara quanto é hoje (quanto a isto, o comunicado oficial recentemente assinado, além de outros, por Clément Nyaletsossi Voule, Relator Especial das Nações Unidas sobre os Direitos à Liberdade de Reunião Pacífica, não deixa dúvidas: a ONU considera ‘de terror’ a situação vivida pelos brasileiros às vésperas destas eleições).
O décimo segundo parágrafo da ‘Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito’, que somou, além das dos seus/suas signatários originais, mais de um milhão de assinaturas, diz exatamente isto: ‘Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática.’ Não demanda retoques. Diz tudo o que qualquer eleitor minimamente respeitador dos princípios democráticos deve ter em mente diante desta eleição presidencial (e das estaduais, pois o projeto de destruição do país conta também com fascistoides locais). Sob o rótulo de ‘divergências menores’ apresenta-se o perigo que tem de ser superado: preferências políticas e partidárias – ou preconceitos – que eventualmente podem afastar o eleitor de sua principal tarefa cívica, civilizatória, qual seja, a ‘defesa da ordem democrática’. Vale dizer: em nome da sobrevivência da democracia, de sua defesa mandatória a todos os cidadãos, a referida Carta nos convida a deixar de lado antipatias históricas que apenas enfraqueceriam o compromisso democrático compartilhado. É ruim dizê-lo – pior é sabê-lo -, porém não é hora de sonhar com o mundo perfeito, mas sim de eliminar perigos bem reais, anunciados à exaustão pelo criminoso obscurantista de extrema-direita que hoje desgoverna o país.
Já é hora de dizer, coletivamente: basta de destruição! Destruição da decência política, da moralidade pública, do espírito republicano, do princípio da convivialidade pacífica entre humanos diferentes; assim como também basta da destruição do meio ambiente, das instituições do Estado, das políticas públicas sociais; do respeito, enfim, pela própria Política como instrumento comum de construção de um mundo em que possamos viver juntos. Basta de corruptos também, lembrarão alguns. E, sim, é verdade, basta igualmente disso, mas convém lembrar aos esquecidos que o combate à corrupção só existe, efetivamente, em ambientes democráticos. [Cabendo anotar, à margem, que, no Brasil destes tempos, é necessário separar os ‘apenas’ corruptos daqueles que, além de corruptos ainda maiores, são igualmente aspirantes a ditadores.] Basta, pois, desse projeto mórbido de mundo que o bolsonarismo, versão brasileira de um medievalismo de costumes e concepções, hoje encontrável no mundo inteiro, levou à vida dos brasileiros. Sabemos bem, mesmo vencido o bolsonarismo nestas eleições – se o for -, será muito difícil superar plenamente esse Zeitgeist demófobo e excludentista que tomou boa parte do Brasil, senão diretamente pelas mãos do capitão, ao menos com muito empenho e competência de sua parte. Sim, ele tem esse ‘mérito’; foi decisivo para o pior, e poderá continuar a sê-lo, se os brasileiros permitirem. O levante dos ignorantes que hoje ameaça o país (e da ignorância grotesca e selvagem como valor) partiu-o ao meio. Precisamos, pois, saber de que lado caminhar. Que se note isto: o avesso da ignorância não é apenas o conhecimento, mas principalmente a civilidade que este nos trouxe. E o Brasil já quase a abandona.
Você pode não gostar de Lula. Eu mesmo não morro de amores, seja (como a Marli bem nos lembra) pelo seu personalismo, com que dizimou lideranças da esquerda brasileira, seja por ter-se afastado de princípios caros à esquerda democrática em nome dos quais fundou o PT. Mas você não pode fazer de conta que ele é igual a Bolsonaro, ou sequer parecido. Não é. Seja pela história pessoal, seja pelo conjunto dos valores políticos desde sempre assumidos, nunca foi. Por isso, entre um democrata imperfeito e um perfeito fascistoide (que, num segundo mandato, concluirá o processo de corrosão das instituições democráticas que já iniciou), quem você escolhe? Se você realmente é democrata – seja liberal, conservador, socialista, ‘terceira via’, social-democrata ou o que mais for -, não pode ter dúvidas. Poderá depois desaprovar o governo de Lula desde o primeiro dia, desqualificar seus métodos e políticas, suas ações concretas; poderá até comandar a oposição e reivindicar votos a outros democratas nas eleições seguintes. Sentir-se-á livre para tal! Você poderá fazer tudo isso, e o fará na certeza de que o governo não reprimirá tua iniciativa, não te demonizará, não golpeará as instituições que te permitem opor-se a ele – nem tampouco urrará que pretende ‘extirpar’ você da vida política nacional… E, esteja certo disso, Lula aceitará o resultado das eleições e, no dia em que deixar o governo, passará a faixa a seu sucessor. Sim, dias um pouquinho melhores podem vir – ou não. Depende do meu voto, assim como do teu. O meu será útil a um país que se quer democrático. Pense nisso. Considere fazer o mesmo, convide outros a fazê-lo igualmente. Nosso voto não reinventará um mundo perfeito, mas poderá torná-lo um tantinho melhor – ou um pouco menos pior, digamos. Todos nós, brasileiros, dentro ou fora do país, partilhamos responsabilidades pelo que acontece a ele. Um país é sempre um work in progress. Que nosso voto nestas eleições não represente, pois, um novo e colossal retrocesso.
Prezada Marli, grato pelo espaço.
Bom voto a todos!