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O gaiola que veio pelo mar. Por Antonio Contente

a gaiola que veio pelo mar

         “Almerim” era um navio-gaiola de proa alta, com a linha de corte d’água quase reta, casco de ferro com passadiço de madeira, como de madeira era o alto da balaustrada que percorria o barco da frente à popa. Construído, em passado remoto, nos estaleiros de Southampton, Inglaterra, contavam que de lá veio navegando até Belém do Pará a enfrentar o Atlântico com ondas imensas. Numa densa tempestade que o colheu nas proximidades da Ilha da Madeira, comandante Josué, experiente navegador dos rios amazônicos enviado para trazer a embarcação ao seu destino final junto com um colega inglês, disse a este, através de um intérprete, no sopro e balançar da borrasca medonha, que assumiria o comando. O espantado britânico titubeou em entregar-lhe o leme, temendo que desconhecesse navegação em mar aberto. “Água é sempre água”, respondeu o amazônico, “e nas baías que se formam nos grandes rios da minha terra, as ondas ficam tão grandes quanto estas”. Colocou assim a proa a seu modo, atravessando a ventania e as espumas como se o timão de madeira com frisos de metal amarelo tivesse nascido nas concavidades de suas mãos. Ao encostar, são e salvo, no porto de Funchal, o inglês abraçou o colega brasileiro para dizer-lhe, com a solenidade dos britânicos: “De hoje em diante, a mim este flutuante se recusará a obedecer”. E até a chegada ao destino, cachimbo entre os dentes, apenas olhou Josué manobrar sobre as águas azuis do oceano pelo qual o brasileiro nunca dantes navegara.

         “Almerim” perdeu o sotaque de filho das terras de Sua Majestade, a rainha, para se tornar rei em muitos rios da Amazônia Profunda. Mas certamente foi no Tocantins, na rota de Belém para Alcobaça (hoje Tucuruí) que bordou a tessitura das lendas que o envolveu. Passageiro várias vezes alojado nos seus camarotes, na segunda metade dos anos 40 corri, menino, sobre as tábuas bem coladas dos passadiços, como se perseguisse a gênese dos meus encantamentos. Mãos agarradas na amurada de proa, vi bandos das aves chamadas “ciganas” sobre folhas de aningais e aturiás, enterneci o olhar a apreciar o salto, sobre as águas, dos botos brancos na baia do Murutipicu, e me emocionei sob céus de gaivotas em volteios plenos de alaridos para pegar os peixinhos que o rebojo do barco trazia à tona.

         Houve instante, afinal, num dos meus desembarques no trapiche da cidadezinha de Mocajuba, que passei a entender o maravilhoso, o sagrado significado do “Almerim” inserido naquele mundo mágico. E depois, em tantas chegadas e no assistir tantas partidas, entendi que o navio era absolutamente definitivo em tudo que jamais poderia deixar de existir; quer nas delimitadas circunstâncias do real, ou nas infinitas dobras e alongamentos do surreal imaginário.

         No passar do tempo, mesmo após ter sido desativado do universo físico, o velho gaiola continuou e continua a navegar nas reentrâncias do impalpável. Em todas as eras, enquanto o mundo for mundo e existir o rio, ele seguirá a passar, iluminado, nas noites de lua ou sem ela no céu, agora como o sortilégio das cobras-grandes que se transformam em barcos imensos que recolhem, nas beiradas amazônicas, os pescadores que são atraídos pelo chamar dos mistérios.  Nos invernos de chuvas intermináveis e neblinas que cobrem a superfície das águas, é a silhueta do “Almerim” que os navegadores solitários avistam, batidas pelas brisas leves das madrugadas. E é nele que, sempre, embarcam para roteiros improváveis que se dissolvem no ar antes da chegada das borboletas amarelas e azuis que trazem, nas asas, a eclosão, sutil e calma, do cintilar das auroras.

         Eram os trapiches das vilas ribeirinhas, naqueles tempos, a única ligação delas com o mundo. E assim que o “Almerim”, na curva da subida do rio apitava anunciando sua chegada no meu chão da infância, já grande parte da pequena população se juntava sobre as tábuas do rústico cais de madeira para acompanhar a atracação. Manobra que se tornava a precisa carícia do roçar do casco de ferro nos troncos que faziam a sustentação da ponte.

         E foi ali, naquele cenário que favorecia a completa entrega às calmas ou aos espantos, que vi, numa das minhas muitas viagens à Mocajuba, a taciturna figura de senhor idoso, trajando roupa branca e a cabeça coberta com chapéu Panamá, sentado num canto do trapiche. E o avistei no primeiro dia, no seguinte, no outro e no outro. Sempre sentado, calado, no mesmo lugar. Curioso, acabei por perguntar de quem se tratava. O rapaz respondeu que ali estava o homem mais velho da cidade, passava dos 100 anos. Com o detalhe: “O nome dele é comandante Josué. Foi quem trouxe para cá, faz muitos e muitos anos, um navio-gaiola construído no outro lado do mundo. Fez isso pilotando pelo mar que não conhecia”.

         Voltei a observar o velhinho, que permanecia com o olhar fixo no horizonte a se perder para os lados da curva do rio imenso. Como se esperasse ali surgir, do nada emoldurado pela tarde, o garboso, o lindo, o inesquecível “Almerim”.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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