Lembrando Mrs. Pinckwood. Por Antonio Contente
Como só li Conan Doyle lá pelos trinta anos, está claro que demorei um pouco a ouvir falar em Baker Street. E se, na continuação, acompanhei muitos casos de Sherlock Holmes em diversos lances, não é exatamente por causa dele que passei a nutrir certo amor pela rua que cito acima. Para mim Baker Street passou a ser certo lugar de Nova York onde morava Mrs. Pinckwood, exatamente no Village. De tamanho, apenas uns poucos quarteirões; onde os plátanos desfolhavam, aos primeiros ventos frios, a emoldurar charmosíssimas construções art-nouveau.
Conheci a doce senhora nos anos 60, quando estive em NY pela primeira vez. Era simpática figura relativamente gorda, cabelos louros misturados com outros nem tanto, maçãs do rosto invariavelmente rosadas. Tinha, de seu, um casarão que poderia ser hotel, pois possuía ótimas suítes; pensão, pelos amplos quartos; e outras coisas mais com aposentos nos quais moravam alguns rapazes, em geral estudantes. Fui hóspede ali.
Quem me levou para lá foi o bom amigo Augusto, filho de ricaço de Botucatu que fazia um curso que nunca terminava numa escola americana. Fomos vizinhos no casarão americano durante alguns meses.
Mas, em tudo isso, o importante, mesmo, era a maravilhosa senhoria. Em nossos papos fiquei sabendo que herdara o nome do primeiro marido, um fazendeiro de Dakota de quem recebera a mansão transformada em hotel/pensão/estalagem/casa de cômodos. Ele morreu numa tarde d’amor com a própria esposa quando, aos 55 anos, se entregou aos esforços de praxe após suculento prato de “Eisbein com Chucrute”. De nascimento mesmo Mrs. Pinckwood era polonesa, com sobrenome, conforme vi num seu documento, impronunciável: Gmstiliwisky.
— Gosto muito do final do seu nome – disse a ela, certa vez – o “wisky”!
Deu uma gargalhada de ecoar pelo quarteirão inteiro.
Casou em segundas núpcias conservando a mansão herdada, sua marca registrada. O novo marido, de resto, era um tremendo boa vida. Com vinte e poucos anos menos do que a esposa, fazia o que o peixe faz, nada. Ou melhor, passava os dias num belo salão no andar térreo, onde havia um barzinho maravilhoso, a derrubar copiosas doses de Bourbon durante a leitura de revistas em quadrinhos. Certa ocasião Mrs. Pinckwood, a revelar insuspeitado temperamento latino, me confessou:
— É um vagabundo. Mas sou doidinha por ele.
Nos tempos que permaneci na casa, percebi que a mulher cuidava de cada hóspede com desvelos de familiar. Sabia o prato predileto de todos, estava a par da hora em que alguns precisavam tomar remédios, e nunca conheci ninguém que anotasse melhor os recados. Numa época em que não havia secretárias eletrônicas, ela era muito mais eficiente do que os, durante tempos, incríveis aparelhos. Basta dizer que uma noite me ligaram do Brasil. E ela anotou, com perfeição, os nomes, em português, de pessoas que eu deveria ir encontrar num dos hotéis da cidade.
Vim até aqui com esta crônica, e iria mais longe se houvesse espaço, porque, voltando a Nova Iorque nada menos de vinte e poucos anos depois, no mesmo século passado, teria, efetivamente, de dar uma chegadinha à Baker Street americana para ver se a velha mansão permanecia de pé e se Mrs. Pinckwood se encontrava dentro dela. Chegando na área percebi que as ruas não haviam mudado quase nada e, surpresa, lá avistei a velha casa naufragada em sua charmosa integridade. Súbito, abrindo-se a porta para o jardinzinho na frente, vejo um homem, aparentando uns sessenta anos, sair a empurrar uma cadeira de rodas onde estava a simpática polonesa que, certamente, trafegava pelos oitenta e lá vai fumaça. O condutor, outro não era senão o segundo marido que, pelo obvio da cena, vinha cuidando muito bem da mulher que se dizia, no passado, louquinha por ele apesar das incompatibilidades do moço com o trampo. Pensei em me aproximar, mas fui tolhido pelo tocante tom intimo, pastoral, do que estava diante dos meus olhos.
De repente paira no ar, vinda de algum lugar, provável janela aberta, uma velha canção de Freed e Lane, gravada por Frank Sinatra nos anos 40, chamada “How About You”. Com acompanhamento de Tommy Dorsey, escuto a letra a falar das delícias de Nova Iorque em junho (Verão por lá), ao citar doces embalos de George Gershwin, o andar comendo batatas pelas praças, ou namorar como se namorava naqueles tempos. E a música, linda, me pegou de forma tão melhor pois o dia era d’Outono, com ventinho já bem frio a dobrar as esquinas. Mrs. Pinckwood e seu “chevalier servant” seguiram, lentamente, pela calçada quase deserta. Chamei um táxi. Fazia novembro e eu necessitava, urgentemente, de um bar.
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ANTONIO CONTENTE –
Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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Bela crônica. Deliciosa.
De Antônio Contente pode -se esperar tudo. Tudo de bom. Ler seus escritos é passeiob certo, seja por onde for. Pelos lugares que ele sabe descrever como ninguém, pela lembranças que ele traz tão carinhosamente, não na sua cabeça, mas no coração.
De Antônio Contente pode-se esperar tudo. Tudo de bom. Passear com ele é muito bom. Seja pelos lugares que ele descreve tão bem , seja pela lembranças que ele traz; não na cabeça, mas no coração.
ANTONIO…….A SUA CRÔNICA TEM CORES, RITMO, SILÊNCIO, TERNURA, SUSPENSE E TUDO O QUE SE RESERVA A SERVIR AO COMANDANTE DA PALAVRA : -SIRVA-SE DE SAUDADE, ANTONIO !!! DESCARREGUE ESTE CORAÇÃO LOTADO DE IDÉIAS CRIATIVAS E SEMEIA NO CHÃO DO TEMPO QUE GERMINARÁ NOVAS PALAVRAS . PALAVRAS QUE REPETIRÃO O FUTURO DE ANOS ATRÁS . O SEU TEXTO NÃO TEM PASSADO, NEM FUTURO. ACONTECE AGORA, COMO TODA CRÔNICA QUE RESPEITA O TEMPO …DA ETERNIDADE. HISTÓRIAS QUE NÃO PODERÃO SER ESQUECIDAS, PORQUE RENASCEM NA SENSIBILIDADE DE ANTONIO, MUITO CONTENTE !!!! E…SE RECONTAM ANOS APÓS ANOS , PARA OS NOSSOS OUVIDOS , ÁVIDOS DAS SUAS PINCELADAS NO CORAÇÃO DA GENTE…