Portugal é aqui. Por José Paulo Cavalcanti Filho
… não custa lembrar um autor português, Ruy Guerra (Fado tropical), que chorou por nós: “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal/ Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”.
Duas histórias.
- Uma se passou em Castro Verde, no Alentejo (sul de Portugal). Dando-se que rico doutor atropelou velho lavrador que trafegava, em estrada de barro, montado no seu burrinho de estimação. Mais tarde o velho tentou, no tribunal, indenização pela perda do animal que morreu. E por ter passado um mês, no hospital, até se recuperar. Na audiência o advogado do atropelador, amigo de Ministros, argumentou:
– Tenho em mãos declaração de um policial que esteve no local do acidente. E ele relatou que, quando o doutor perguntou “como está”, o senhor respondeu “Estou optimo”. O senhor nega isso?
– Não. É verdade.
– E como pretende, agora, ser indenizado?
– Porque falta um detalhe, nessa história. É que o doutor, depois de nos atropelar, perguntou à minha burrinha se ela estava bem. Claro que a coitada não disse nada. E ele, sob alegação de que estava fingindo, lhe deu 3 tiros.
Calou-se. O juiz pediu que continuasse.
– Depois virou-se para mim, pôs na minha cara o mesmo revólver, e repetiu a pergunta “E o senhor, está bem?”. Foi quando respondi “Estou optimo, estou optimo”.
E, por não ter o pobre como provar o alegado, foi o rico doutor absolvido pelo juiz.
- Outra é um conto de Tomás Ribeiro (Lobos famintos), em diálogos que resumo:
‒ O senhor D. Martinho de Aguilar?
‒ Eu sou (lhe diz o ancião). A quem me cabe a honra de falar?
‒ A Justiça de Castela (queria que lhe entregasse filho, que com palavras ofendeu o Rei).
‒ Bem vinda seja ela.
‒ Em nome d’El-Rei/ Como Pai de D. Jaime de Aguilar,/ Que é réu de alta traição/ Tendes a vossa fortuna confiscada!…/ Podei-la resgatar,/ Se, vassalo fiel e obediente/ O entregardes à justa punição.
‒ El-rei de Castela é nobre! Não manda insultar um velho!/ Pode mandá-lo ser pobre,/ Matá-lo à míngua de pão.
‒ Mais conta em vós, D. Martinho,/ Que estais em casa d’El-Rei!
‒ Na vossa, lobos famintos,/ Bandidos sem fé nem lei;/ Lobos famintos, comei!…
Inúteis as queixas de D. Martinho. A quem se pediu o que jamais poderia fazer, que era entregar o filho. Sendo sua fortuna confiscada por El-Rei.
- É só literatura, leitor amigo. Sem nenhuma relação com o que se passa hoje em Brasília, claro. Mas não custa lembrar um autor português, Ruy Guerra (Fado tropical), que chorou por nós: “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal/ Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”.
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José Paulo Cavalcanti Filho – É advogado e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade. Vive no Recife. Acaba de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, cadeira 39.