Madame e os frangos do Brasil. Por José Horta Manzano
…Citou “a multiplicação de acordos de livre-comércio que servem para vender carros alemães e castigam os agricultores franceses com a concorrência de frangos do Brasil ou bovinos do Canadá”.
Como lembrei anteontem, estamos entre os dois turnos das eleições presidenciais francesas. Ontem realizou-se o grande debate, o único organizado entre os dois finalistas. Foram duas horas e meia de perguntas, respostas, explicações, afirmações, aproximações, esgueiradas, maldades, dardos envenenados, sorrisos desajeitados.
Cada um dos candidatos – o atual presidente, Emmanuel Macron e a candidata de extrema-direita, Marine Le Pen – deu o que tinha pra dar, fez o que sabe fazer e representou o papel que costuma representar. Foi sem surpresa. O medidor de audiência marcou 15,6 milhões de telespectadores, aos quais convém acrescentar os que, em algum momento, deram uma espiada nas redes sociais, que também transmitiam ao vivo.
Pra se ter uma ideia de quanto tem baixado o interesse público por esse tipo de confrontação, é bom saber que o primeiro debate, travado em 1974 entre Mitterrand e Giscard d’Estaing, tinha reunido 30 milhões de telespectadores – o dobro da audiência de ontem.
Mas o diálogo entre os adversários, às vezes polido, às vezes ácido, sempre traz algum momento interessante. Uma passagem impagável surgiu quando Madame Le Pen criticava o funcionamento da União Europeia, cavalo de batalha que ela costuma montar com frequência. Adepta do fechamento de seu país para o mundo, ela deprecia a Europa dia sim, outro também.
Madame Le Pen (de estreita visão nacionalista-passadista) acusou Monsieur Macron (europeísta convicto) de ter intenção de “substituir o povo francês pelo povo europeu”. E continuou argumentando que há “uma série de políticas da UE com as quais não estou de acordo”. Citou “a multiplicação de acordos de livre-comércio que servem para vender carros alemães e castigam os agricultores franceses com a concorrência de frangos do Brasil ou bovinos do Canadá”.
Nesse ponto, Monsieur Macron percebeu que Madame – por ignorância ou má-fé – misturava alhos com bugalhos. Perguntou: “Que frango do Brasil?”. E lembrou à distraída adversária que ele tinha se oposto ao acordo da UE com o Mercosul, porque “quando impomos certas exigências aos agricultores nacionais, exigimos o mesmo dos de fora”. Diante do silêncio embaraçado da adversária, acusou Madame Le Pen de “tentar vender gato por lebre”.
É verdade que, enquanto Macron é dotado de uma inteligência superior à média, sua adversária se limita à esperteza dos populistas: diz o que a audiência quer ouvir. Mas uma coisa é falar num cercadinho qualquer para público cativo, e outra é argumentar diante de um homem que está há cinco anos lidando diariamente com esses temas. Não tem como.
Observação
A história dos “frangos do Brasil”, que Madame pôs à mesa, rendeu pano pra mangas e fez a alegria das redes sociais. Nos momentos seguintes, houve milhares de comentários, menções, tuítes, retuítes, likes & alia. A maioria dos comentaristas dizia não saber do que ela estava falando.
________________________________
JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.