A acolhida dos refugiados. Por José Horta Manzano
Já vi muita imagem de refugiado sendo acolhido em país que não é o seu. Já vi muita imagem de cidadão que, por motivo de guerra ou sequestro, foi fotografado na volta ao país natal. Todos chegam sorridentes. É sorriso de cansaço, mas sabem que é o último esforço antes de poder sossegar.
O que nunca vi é refugiado ou repatriado chegar ostentando a bandeira do país natal ou do país que o acolhe. É imagem rara. A última vez que tinha visto isso foi quando a doutora importou profissionais cubanos no âmbito do programa Mais Médicos. Eram aqueles que já vinham de jaleco – um contrassenso, visto o risco de contaminação –, todos agitando uma bandeirinha de Cuba e outra do Brasil.
O instantâneo estampado acima foi colhido em 10 de março, quando desembarcaram algumas dezenas de cidadãos provenientes da Ucrânia. Deviam estar todos pra lá de cansados. Dependendo da cidade ucraniana de onde cada um vinha, já tinha cumprido uma jornada de horas ou dias só pra chegar a Varsóvia, ponto de embarque no aviãozinho da FAB.
… A meu ver, o que mais esse pessoal queria era poder espichar as pernas numa cama confortável e se deliciar com a sombra e o silêncio de um hotel qualquer. Mas o capitão não liga pra essas coisas. Enquanto ele e a família não estiverem em perigo, os outros que se danem…
Em seguida, dado que o pequeno aparelho não tem autonomia para ir muito longe sem reabastecer, tiveram de fazer quatro escalas: em Lisboa, depois em Cabo Verde (no meio do Atlântico), em seguida no Recife, para, finalmente pousar em Brasília sob aquele sol do meio-dia. Imagine em que estado chega alguém que saiu do inverno ucraniano, viajou sabe-se lá quantos dias e noites, chacoalhou dentro de um avião sem conforto e desembarca no escaldante cerrado brasiliense.
A meu ver, o que mais esse pessoal queria era poder espichar as pernas numa cama confortável e se deliciar com a sombra e o silêncio de um hotel qualquer. Mas o capitão não liga pra essas coisas. Enquanto ele e a família não estiverem em perigo, os outros que se danem. Todos tiveram de se alinhar, de pé, em cima do concreto, plantados ao lado do corpo metálico do bojudo avião, sem nada que lhes protegesse a cabeça.
O mais curioso é que, como por milagre, surgiu mais de uma dúzia de bandeiras, todas do mesmo tamanho e de mesmo feitio. Foi solicitado aos participantes que exibissem o símbolo nacional. Foi tão espontâneo, que alguns nem sabiam como segurar o lindo pendão da esperança.
Na foto, vê-se um que “entornou” a flâmula, que ficou parecendo livro em prateleira, daqueles que a gente tem de torcer o pescoço se quiser ler o dorso. Pior ainda, tem uma que segura nosso símbolo maior… de cabeça pra baixo! (Fosse no tempo dos militares, seria chamada a prestar esclarecimentos no quartel mais próximo.)
Até o momento em que escrevo, perto de dois milhões (yes, dois milhões!) de cidadãos ucranianos já foram acolhidos na fronteira polonesa. Nem o presidente do país foi lá apertar mãos, nem a primeira-dama foi dar beijinhos. Ninguém distribuiu bandeiras para mostrar às câmeras. Presidente de país sério costuma ter mais que fazer. E as equipes designadas para a acolhida conhecem as necessidades urgentes dos refugiados: comida quente, água e uma cama quentinha o mais rápido possível.
O capitão precisa fazer um estágio fora do país. Não há muita esperança de ele aprender, mas não custa tentar.
Curiosidade
Ninguém se preocupou muito com isso, mas o fato é que Bolsonaro não discursou. Para um homem que, além de ter o costume de falar pelos cotovelos, está em aberta campanha eleitoral, pode parecer estranho. Tenho cá uma explicação.
Os filhos e os áulicos devem ter recomendado vigorosamente a ele que não abrisse a boca diante de microfones. Sabem por quê? Porque fica difícil dirigir-se a um grupo que escapou de uma guerra sem pronunciar a palavra “guerra”.
Cairia muito mal que Bolsonaro – que não esconde sua admiração por Putin, nem o apoio desabrido que dá ao ditador russo – falasse em guerra, quando essa palavra está proscrita da ‘narrativa’ oficial russa. Pelas bandas de Moscou, quem ousar se referir à invasão da Ucrânia como “guerra” arrisca passar uma dúzia de anos nos gelos siberianos. Preso.
O capitão, que é meio bobão, era bem capaz de escorregar. Vai daí, foi compelido a calar o bico. Melhor assim. Já imaginaram, logo ele, que zombou do Lula que foi preso no conforto de uma cela cinco estrelas em Curitiba, ser encarcerado numa masmorra siberiana?
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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Ao ver a cena patética da viagem / chegada dos resgatados, fiquei esperando por um texto que manifestasse toda minha vergonha alheia…. felizmente o seu conseguiu expor todo esse sentimento… muito grato!
Como é pequeno o mundo do capitão!
Infelizmente, fui um dos tantos que um dia acreditou que poderíamos realmente efetuar mudanças no nosso país… consegue ser pior que a “ensacadora de vento”, sempre de olho na folhinha para ver os feriados e, emenda-los com passeios e desfrutes às nossas custas…
Abraço, belo texto!
Obrigado pelas palavras gentis.
Meu abraço.
Gentileza sua dizer que o capitão “é meio bobão”.
Na minha terra é outro o adjetivo.