O sonho dos tsares. Por José Horta Manzano
Putin é mentalmente desequilibrado, mas não chega a ser suicida. (Pelo menos, é o que se espera.) A estas alturas, há de ter entendido que subjugar a Ucrânia será tarefa complicada, talvez impossível. O país periga virar um atoleiro como foi o Vietnã para os americanos.
Ninguém, talvez nem o próprio Putin, sabe que rumo tomará essa guerra. Perdido por perdido, o que interessa agora é agarrar a parte do território ucraniano que interessa a Moscou.
O imenso território da Rússia equivale ao dobro do nosso. O país, muito extenso de leste a oeste, cobre nada menos que 11 fusos horários. Apesar disso, a Rússia sofre um problema secular: a posição encravada e a falta de saída para mares quentes não lhe permitem movimentar a frota naval o ano todo.
Na face norte, o país tem longo litoral banhado pelo Oceano Ártico. O problema é que o mar está congelado boa parte do ano. Nenhum navio passa.
Uma parte da face leste da Rússia é livre de gelo, mas o porto de Vladivostok, que lá se encontra, está a 10 mil quilômetros de Moscou e do grosso da população e das indústrias do país.
A face oeste, a mais próxima do centro de gravitação do país, está “bloqueada” pela Europa. Desde o tempo dos tsares, o sonho geopolítico russo foi expandir seu território para o lado europeu. A cada guerra, procuravam se apossar de mais um trecho de litoral. Foi assim que ficaram com parte do litoral da Finlândia, da Polônia e, mais recentemente, da própria Ucrânia, quando anexaram a Crimeia.
Putin certamente encampou o antigo sonho nacional. A atual invasão da Ucrânia parece ser a primeira batalha de uma guerra de conquista de território. Seu plano devia ir muito mais longe. Imaginava que os europeus não conseguissem se entender e cada país reagisse por si. Não contava com a encarnada resistência dos ucranianos. Não acreditava que as sanções fossem atingir sua economia tão duramente. Não botava fé na repulsa que sua guerra causaria ao redor do globo.
Não deu muito certo. Diante da realidade que frustra seus sonhos de conquista rápida e sem resistência, deve estar tentando encontrar o melhor meio de abandonar (por enquanto) o plano inicial, sem perder a face. Estará considerando que, se se contentar em abocanhar um bom trecho do litoral da Ucrânia ninguém vai reclamar. A hora é agora.
Repare no mapa que ilustra este artigo. Vê-se a península da Crimeia (hachurada em branco e rosa), totalmente circundada pelo mar, que já foi anexada de facto em 2014. Nota-se que as províncias separatistas do leste estão ocupadas e praticamente anexadas. O oeste do país, na direção da Polônia e da Romênia, está intocado, sem bombardeio e sem invasão.
Quanto ao litoral, fica claro que as tropas se empenham em ocupar toda a região costeira. Se conseguirem fazer a junção entre Donetsk e Kherson – e sem dúvida vão conseguir –, a Rússia será a única dona do Mar de Azov. De quebra, fica com o porto ucraniano de Mariupol, com todas as suas instalações. Conhecendo Putin, não parece impossível que ele ouse anexar todo o litoral ucraniano, privando assim o país de saída para o mar.
No Brasil, tem gente que se engasga com camarão mas sobrevive.
Na Rússia, parece que veneno se vende em supermercado, tão grande é o número de oponentes ao regime que, acidentalmente, ingerem uma dose – e não sobrevivem. Putin que se cuide.
Quando sair (ou “for saído”) do Kremlin, ele terá conseguido transformar em realidade uma parte do velho sonho imperial russo. A não ser que seu desequilíbrio mental seja mais forte do que se imagina e ele decida atacar algum país da Otan.
Se isso acontecer, será a Terceira Guerra Mundial em ação.
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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