Música para a vida. Por Jaime Pinsky
… reação desta que é uma das melhores plateias do mundo. Já vi e ouvi concertos em salas famosas nos Estados Unidos e Europa e não conheço público melhor do que o dos sábados à tarde na Sala São Paulo. As pessoas cresceram tanto… Há silêncio, há concentração, há interesse em ouvir, em aprender, em sentir. Impressionante…
Fazia muito tempo que a Sala São Paulo não via algo assim: em vez de 300 ou 400 pessoas, que recebia durante e por causa da pandemia, abrigava mais de 1000 espectadores. Muitos se reconheciam de se verem, há dois anos, ou mais, e se olhavam, felizes por estarem vivos, felizes por estarem lá, felizes por se verem. Exagero se disser que parecia uma comunhão ruidosa, uma festa quase religiosa, uma libação sem vinho?
Era um sábado à tarde, horário feliz, escolhido por muitos, em vez dos desagradáveis eventos que começam às 9 da noite e terminam muito tarde, quando se consegue voltar para casa, depois de atravessar a Cracolândia. Era, como dizia, um sábado, mas não um sábado qualquer, véspera de domingo. Era também véspera de um feriado de segunda feira, um 15 de novembro, feriado da República. Muita gente fora de São Paulo. Mesmo assim, a Sala São Paulo, um dos lugares da cidade que mais amamos, fervia. Até um primo estava lá, com toda a família, inclusive um neto pianista de 8 anos. Para um concerto que tocaria russos do século XIX: Rimsky Korsakov e Tchaikovsky. Sheherazade e o Concerto número 1 para piano e orquestra. Clássicos populares, como costumavam ser chamados.
Os músicos afinavam seus instrumentos na nossa frente; sabiam estar entre amigos, pois afinar instrumento para um músico é como ainda andar de pijama ou camisola, é uma coisa íntima, que não se faz na presença de estranhos. Agora eles saem do palco e se reúnem para a entrada oficial. A maestrina, muito querida por todos, é a mais importante dirigente de orquestra mulher, sempre com sua roupa discreta e algum detalhe um vermelho sangue. Ela dirigiu a OSESP durante anos e foi se impondo aos poucos, tanto entre os músicos, quanto entre o público. Venceu por que é boa. Venceu por ter um projeto que estabelece um compromisso viável entre peças novas e “velhas” músicas amadas por todos, mesmo por aqueles que não confessam seu amor por coisas tão lindas. Marin Alsop venceu pela competência e representa o período de ouro da OSESP.
Aí a orquestra entra. O público delira. Quando a maestrina se apresenta no palco e se prepara para reger, é impedida de fazê-lo. O povo queria aplaudi-la um pouco mais. Ela agradece ainda uma vez e dá as costas aos aplausos para começar a música que, durante 50 minutos, mostra como a orquestra gosta dela: os músicos não tocam com vigor, tocam com furor. Baldini, o spalla, extrai de seu violino sons de uma delicadeza insuspeitada, mesmo por aqueles que o tem como excelente violinista. Instrumentos de sopro, originários de sons obtidos por chifres, são tocados tão vigorosamente que, se estivéssemos na floresta, seriam capazes de atrair até animais extintos há milhares de anos. As cordas parecem ser operadas por um ser único, não por dezenas de músicos: todo mundo acerta o movimento dos braços, para cima e para baixo, para cima e para baixo, assim como o sutil toque dos dedos nas cordas. Não interessa se não é minha música predileta. Não interessa se a narrativa das mil e uma noites possa parecer repetitiva. É um momento mágico. É a nossa orquestra, a orquestra que nós amamos, com várias figuras familiares que descobrimos por trás das máscaras, tocando para cada um de nós.
Agora é com Gabriela Montero. Venezuelana, excelente pianista, fruto de um lindo projeto que empolgou o país dela inteiro levando música clássica ao povo e trazendo o povo para conhecer e tocar essa música. Alta, bonita, lindamente vestida, senta-se ao piano e ataca o conhecido concerto de Tchaikovsky. Claro que seus braços longos e suas belas mãos são seus aliados na execução dos trechos mais exigentes. Sua interpretação me lembra a de outra latino americana, a argentina, Martha Argerich, o que não é pouco, pois esta é das grandes, imensas. Gabriela é íntima do concerto: temos a impressão de que toca fácil, mas quem conhece sabe quanto é difícil parecer fácil.
É mais comum ver rostos se contorcendo, parecendo sofrer. Buscam piedade, já que não conseguem passar emoção. Não aqui. Gabriela toca com evidente prazer, feliz por fazer parte deste encontro único, domina as dificuldades e toca. Observa os gestos da maestrina e toca. Quando termina o primeiro movimento (e o compositor não deixa barato, as últimas notas parecem anunciar o final do concerto, o fim dos tempos, a chegada do Messias) espero as palmas habituais das pessoas distraídas, emocionadas demais e até das sem nenhuma familiaridade com a música. Nada. Não, não é falta de entusiasmo, é a reação desta que é uma das melhores plateias do mundo. Já vi e ouvi concertos em salas famosas nos Estados Unidos e Europa e não conheço público melhor do que o dos sábados à tarde na Sala São Paulo. As pessoas cresceram tanto… Há silêncio, há concentração, há interesse em ouvir, em aprender, em sentir. Impressionante.
Mas tudo o que é bom também acaba. Depois de Gabriela vencer os outros movimentos, depois de arrancar os últimos acordes do piano, depois de terminar brilhantemente com Tchaikovsky, ouve e fica feliz com os aplausos que duram muito tempo. Aí ela e se coloca – ou é colocada por Alsop – à disposição do público. Explica o sua proposta de bis: a partir de alguma música bem conhecida da plateia fará variações, ou algum outro tipo de improviso, compondo e tocando algo que nunca existiu antes e que não ficará registrado. Terá apenas a duração de sua execução. Não será perpetuado. Funcionará como uma espécie de acordo particular entre a pianista e seu público. Alguém sugere que o ponto de partida seja uma música brasileira muito conhecida, “Carinhoso”. Uma pessoa do público tenta cantarolar. É difícil ouvi-la. O flautista da orquestra, de improviso e por iniciativa própria, começa a executar a música. Lindamente. Gabriela gosta do que ouve, assimila a melodia básica e cria. Sensibilidade – razão – habilidade – talento – criatividade – dedos ágeis – piano. Uau! E não é que lembra Bach? Sim, Bach, com um leva tempero moderno. E a música, criada na hora, ganha vida. Temos a sensação de que já a conhecíamos de antes, de sempre. Gabriela fica entre nós.
Aí o concerto acaba. De verdade. Saímos alegres, felizes por ter feito parte de algo fora do comum. Sim, foi um dos concertos mais marcantes da minha vida. Lembra-me de outro, que assisti em Jerusalém, há décadas. O pianista era Van Cliburn, o americano que venceu o concurso Tchaikovsky em Moscou, e ajudou a acabar com a guerra fria. Passam pela minha memória outros pianistas, violinistas, violoncelistas e até flautistas fantásticos que vi e ouvi mundo afora. Mas hoje, neste final de tarde de sábado, Alsop e Montero, com a colaboração da orquestra foram tudo isso e mais um pouco.
Obrigado.
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JAIME PINSKY: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto. Autor de vários livros sobre preconceito, cidadania e escravidão. Organizador e coautor do livro “Novos Combates da História“.
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