A arte de redigir nota de falecimento. Por José Horta Manzano
… Se Bolsonaro, logo no início do mandato, não tivesse ofendido a primeira-dama francesa, até que podia mandar um ou dois emissários para um estágio no Eliseu, a fim de serem iniciados nas artes de redigir um elogio fúnebre digno de país civilizado…
Com o falecimento de Nélson Freire, ocorrido semana passada, o Brasil perdeu seu mais importante intérprete de música erudita, o único conhecido e reconhecido universalmente. Muitos anos hão de se passar até que outro filho desta terra entre no rol dos maiores do mundo.
Em horas assim, quando falece um grande nome da música nacional, é praxe haver manifestação imediata da Secretaria da Cultura, da Presidência da República e do Ministério das Relações Exteriores.
Como já mencionei alguns dias atrás, doutor Frias, secretário nacional de Cultura não deu um pio. Por certo, nunca tinha ouvido falar de um dos maiores pianistas do mundo. Mais inquietante ainda é ver que falta, no staff, um encarregado de seguir o que acontece fora da bolha em que todos eles vivem.
O presidente Bolsonaro, grosseiro como de costume, nem falou nem disse nada. Silêncio absoluto. Não sabia, não sabe e nunca saberá quem foi Nélson Freire. Talvez achasse que, como todo artista, “esse daí” também era comunista. Vai ver até que votou no PT. “Pô.”
O Itamaraty, que ainda guarda algum resquício do que costumava ser a diplomacia brasileira, manifestou-se. Soltou um comunicado formal, protocolar, que não chega a 1000 toques, com 155 palavras. Descrever em 155 palavras a carreira de um artista maior é complicado. Não dá.
Apesar da exiguidade do comunicado, o Itamaraty ainda encontrou jeito de encaixar a seguinte frase: “Muitas de suas apresentações internacionais contaram com apoio do Itamaraty”. Jogar flores em si mesmo pode cair bem em outras ocasiões; em nota de falecimento, pega mal pra caramba. Além de prepotente, é o cúmulo da deselegância. Nélson Freire não dependeu do “apoio” do Itamaraty para correr mundo e firmar seu renome em 70 anos de carreira.
No dia seguinte ao do anúncio da morte do artista, o Palácio do Eliseu soltou nota de falecimento, assinada pelo presidente Emmanuel Macron. Como todos sabem, o palácio presidencial francês não é agência funerária. Comunicados da Presidência francesa são poucos, caem a conta-gotas.
A nota de falecimento francesa traz uma minibiografia do homenageado, com 437 palavras espalhadas por 2800 toques (quase três vezes a extensão do bilhetinho do Itamaraty). Vê-se que foi escrita por quem é do ramo. Dá um apanhado preciso da obra do artista, cita sua discografia, relembra seus compositores favoritos, menciona as peculiaridades de seu toque e da sonoridade que conseguia extrair do instrumento.
Não esquece a velha amizade que unia o brasileiro a Martha Argerich, considerada a maior pianista viva. E termina declarando: “o presidente da República e esposa saúdam o excepcional intérprete de Debussy, que nos brindou frequentemente com sua presença, e dirigem suas condolências sinceras aos que lhe eram próximos, assim como a todos os que se emocionavam com a poesia de seu toque”.
Se Bolsonaro, logo no início do mandato, não tivesse ofendido a primeira-dama francesa, até que podia mandar um ou dois emissários para um estágio no Eliseu, a fim de serem iniciados nas artes de redigir um elogio fúnebre digno de país civilizado.
O encargo fica para o sucessor do capitão.
Para saber mais:
O original da nota do Itamaraty
O original da nota do Palácio do Eliseu
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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Prezado Manzano, não sei se você lerá este meu comentariozinho mais ou menos insignificante, mas quero lhe agradecer pelo texto, que une sua habitual destreza com a língua à sensibilidade (mais e mais rarefeita entre brasileiros) de se dedicar ao que merece respeito. Você, ao escrever, tanto quanto eu, ao ler; parece que fazemos parte de uma ilha habitada por muito poucos. Uma breve passada d’olhos pelas páginas dos jornais, sites de imprensa, noticiosos de TV etc., revela o quão somos ignorantes, intelectualmente destratados, incultos, grossos; desleixados com o que temos de melhor e de mais brilhante. É traço nacional pelo pelo que somos cada vez mais reconhecidos no mundo, especialmente nos tempos dessa caterva capitã que nos castiga em tempo integral. Nelson Freire, certamente um gênio da melhor música, não merecia o país em que nasceu, e que, agora, negligenciando estupidamente sua memória, dedica-lhe um milionésimo do tempo, das palavras e das lástimas que, em prantos, entrega à memória de uma cantora que, para a história da música universal, representa uma parte infinitesimal da importância que Freire para sempre representará. Nada tenho contra a cantora e sua memória, que se diga. Nem tenho como, pois sequer a conhecia, e posso dizer (se é que é possível acreditar) que realmente nunca a havia ouvido (e agora apenas parece impossível não ouvir). Lamento muito é que que não se dê a Freire, esse virtuose que interpretou de Bach a Liszt com a mesma alma e a mesma qualidade que tanto emociona quem ouve, o mesmo tratamento, as mesmas deferências, as mesmas homenagens. Definitivamente, Freire parece demais para o Brasil que vivemos.
Agora há pouco, antes de abrir o laptop, e por coincidência imprevisível, minha mulher pôs no toca-cds um de seus discos preferidos (até nossos Pomerânias gostam de ouvir; ficam quietinhos, coisa bem rara nesta casa…): ‘Nelson Freire – Liszt: Harmonies du Soir’. Não sei se você tem este CD. Se tiver, escute. Faz bem. A gente precisa disso.
Prezado e fiel RedFox,
“Essa caterva capitã que nos castiga em tempo integral”… Não sou só eu quem mostra destreza no manejo da língua. Estamos aí, companheiro!
Agradeço pelas palavras gentis. Se o capitão é a quintessência, a caricatura, o nec plus ultra do espírito que reina na ‘intelligentsia’ nacional, ele não é, infelizmente, o único exemplar. Não é o primeiro, nem será o último. Chafurda no mesmo nível dos que o precederam estas últimas duas décadas. A diferença é que, sendo ainda mais ignorante que os anteriores, não se dá conta das pauladas que assesta no bom senso. É a personificação do bobo alegre.
Dito isso, tem você razão. A imensa maioria de nosso povo não está em condições de dar o justo valor a gente do quilate de um Nélson Freire – simplesmente por nunca ter ouvido falar dele. Ao mesmo limbo, estão relegados artistas, criadores, cientistas, pesquisadores, eruditos, filólogos e tanta gente boa. Longe dos olhos, longe do coração, como se dizia antigamente. Se não são conhecidos, não podem ser apreciados.
O brasileiro não é nem mais nem menos inteligente que outro povo. Somos ignorantes porque atrasados. Ou somos atrasados porque ignorantes. Tanto faz, funciona nos dois sentidos. Vivemos nesse círculo vicioso que, no fundo, interessa justamente àqueles que têm o poder de mudar as coisas: parlamentares e todo o pessoal do andar de cima. Enquanto durar o atraso nacional, eles estão no lucro, com eleição garantida. Por que mexeriam uma palha?
Então, prezado amigo, melhor será nos resignarmos. Nenhuma mudança há de ocorrer nas próximas décadas. Daqui a um século, quem sabe? De toda maneira, não estaremos mais aqui pra ver.
Forte abraço.
PS: Não me exprimi (nem pretendo me exprimir) sobre a jovem cantora que morreu. A razão é simples: não a conhecia, nunca tinha ouvido falar dela, não sei como era sua voz, desconheço o tipo de música que cantava. Só sei o que os jornais publicaram estes dias. Imagine que, da última vez em que visitei o território nacional, ela ainda tinha 3 aninhos. Em matéria de ídolos da música brasileira atual, estou desatualizado. Parei na Elizeth, na Isaurinha e na Ângela Maria.
Meu caro. Fico contente pelo diálogo. O Brasil tem certo savoir-faire – ou know-how, como dizem os nacionalistas… – em se fazer governar por tranqueiras de todos os tipos, tamanhos, formações e deformações psíquicas, formas físicas e sotaques regionais. A novidade que estes últimos três anos nos trouxeram foi, digamos, a profundidade do abismo, pois agora temos um especialista para cavá-lo. Nunca antes na história deste país (como diz um deles), havíamos sido governados por uma verdadeira encarnação do Mal, aquele que só tenta o pior, aparentemente por deleite sádico. Outros, antes dele, com maior ou menor índice de acerto (normalmente, mais perto do menor), tentaram, entre tantas e variadas patranhas, em certas áreas sob sua administração, realizar algo de bom – ao menos, para funcionar como bandeira de governo. E, correndo o risco de parecer um tanto panglossiano, acho que, por pouco que seja diante das necessidades do país, parcialmente conseguiram. Já disse outras vezes que, de meu ponto de vista, juntar FHC, Lula, até mesmo dona Dilma, ao capitão, é injusto. Poderia adicionar Itamar a esta lista, e não creio que faria mal à biografia de nenhum deles. O capitão que temos hoje, este sim, é o que destoa. Antes dele (ou deveria dizer daquilo?), destruir a natureza não era política pública oficial por aqui. Antes dele, destruir a vida humana no atacado, tratando gente como rebanho a se imunizar naturalmente, não era prioridade nacional. Antes dele, a ciência que fazemos ainda recebia migalhas, que hoje já faltam. Antes dele, o aparelhamento de Estado – pelo que tanto se apontou o dedo ao PT – não havia chegado ao ponto de instalar na Fundação Palmares um negro que sonha fundar um novo tipo de Ku Klux Klan, e um ministro de STF que terá de almoçar com o asmodeu toda semana – provavelmente para receber dele a agenda das maldades. Sejamos francos: o capitão piorou tudo o que já era ruim, mas, no que era bom… bem, aí é que ele piorou de verdade. Tivemos, nas últimas décadas, governos que penaram tentando se manter na nota de corte, mas agora temos um que pena para tentar chegar ao fundo do abismo – e, mesmo que isso seja muito difícil (alguns diriam que é fisicamente impossível), ele persevera na ruindade e vence a natureza do universo pelo cansaço. O capitão é o que os físicos chamam de entropia, mas aplicada ao mundo da política, da ética e da vida comum. E, diferentemente da entropia na termodinâmica, esta tem vontade própria, recalcada, reprimida, e que agora, na liberdade que o voto nacional lhe concedeu, entrega-se ao prazer de destruir com um propósito.
É isso. Forte abraço da raposa vermelha. Continue nos brindando com seus textos, que são bons de ler, de pensar e de divertir com inteligência. É sempre um prazer encontrá-lo aqui e no Brasil de Longe.