
UMA VISITA À MANSÃO BOLSONARO
FERNANDO GABEIRA
Uma das formas de combater essa posição é apontar a distância entre as palavras e a realidade. Bannon vive como um homem rico e a mansão do primogênito de Bolsonaro é mais uma demonstração de que seu grande projeto na vida é o de enriquecer…
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO E NO SITE DO AUTOR, www.gabeira.com.br, EDIÇÃO DE 8 DE MARÇO DE 2021
Flávio Bolsonaro comprou mansão de R$6 milhões em Brasília. Raramente me interesso por pessoas cujas casas têm banheiros com mármore de carrara, espaço gourmet, iluminação led na piscina, home theater e toda essa papagaiada.
No entanto, os teóricos do bolsonarismo, entre eles Steve Bannon e o chanceler Ernesto Araújo, sempre afirmam que sua luta é contra o materialismo decadente que dará lugar a uma sociedade dominada pelos símbolos e povoada por sacerdotes.
Uma das formas de combater essa posição é apontar a distância entre as palavras e a realidade. Bannon vive como um homem rico e a mansão do primogênito de Bolsonaro é mais uma demonstração de que seu grande projeto na vida é o de enriquecer.
No entanto, existem outras formas de contestar os teóricos do bolsonarismo, embora quase ninguém se importe com isso por achar que eles são auto contestáveis.
Gosto dessas discussões pois afinal são parte da minha vida. Nas poucas visitas a Londres, sempre dedicava meu tempo a passear na querida Charing Cross Road, rua famosa por suas livrarias, que talvez nem existam mais como antes.
Foi na Charing Cross que comprei cinco volumes de uma pesquisa realizada pela Fundação Europeia de Ciência, sob o título de Crenças no Governo. O quarto deles foi o que mais me interessou. Chama-se O Impacto dos Valores.
Toda vez que vejo teóricos da chamada alt right afirmarem que vivemos numa sociedade materialista decadente, lembro-me desse livro.
Segundo ele, os pontos da decadência materialista que mais incomodam, o feminismo, a luta contra o racismo, a ecologia são na verdade, valores que surgiram precisamente no pós materialismo, a partir dos anos 60.
A passagem dos valores materialistas para uma nova fase significa a superação dos anos de dificuldades econômicas e inseguranças, abrindo espaço para as necessidades de auto expressão, pertencimento, satisfação estética, cuidados ambientais, nesse caso uma ética para com as novas gerações.
Tudo isso surgiu de mudanças profundas na sociedade. Ela não foi um processo de perda de valores, mas sim de câmbio de valores.
As feministas questionam valores patriarcais, os negros questionam a supremacia branca, tão cara a alt right, os intelectuais pós materialistas condenam uma ideia de felicidade que consiste na acumulação de riquezas.
Os teóricos do bolsonarismo ao se apegarem a uma religiosidade popular são apenas nostálgicos pois não examinam as próprias mudanças no interior da religião, provocadas pelo avanço da racionalidade ocidental, o que os sociólogos chamam de desencantamento do mundo.
…volto à mansão do senador Flávio Bolsonaro e encontro nela um espaço mais adequado para traduzir os anseios de um grupo político que apenas se aproveita da religiosidade popular para atender os anseios de acumular riquezas…
Steve Bannon dá a impressão de que leu Heidegger. Duvido que tenha feito bom proveito. Segundo o filósofo alemão somos um ser no mundo, impossível descuidar dele.
Trump e Bolsonaro destroem o meio ambiente em nome de um materialismo vulgar que supõe que somos senhores do mundo e o controlamos de uma posição exterior.
Não quero dizer que as lutas modernas são perfeitas, nem negar que às vezes se excedem. Também não acredito que a questão identitária possa substituir uma consciência que envolva o problema de todos.
Quero apenas acentuar que os chamados líderes espirituais da extrema direita buscam reviver um passado que não existe mais e mesmo se essa ilusão leva a uma vitória eleitoral, é completamente incapaz de conduzir o presente.
Por isso, volto à mansão do senador Flávio Bolsonaro e encontro nela um espaço mais adequado para traduzir os anseios de um grupo político que apenas se aproveita da religiosidade popular para atender os anseios de acumular riquezas.
Não é por acaso que o grande líder mundial dessa corrente é Donald Trump.
E seu correspondente tropical entope o país com armas, em confronto com a própria religião.
