A guerra das Ilhas. Notas de um observador militar. (*)
A GUERRA DAS ILHAS
NOTAS DE UM OBSERVADOR MILITAR (*)
…Essas Ilhas estão em guerra – já se disse – e esta guerra a cada dia cresce em escala. Apesar de seus dirigentes serem sábios versados em leis, e talvez por isso mesmo, muitas vezes guerreiam por questões jurídicas. Cada um deles sabe o que é direito melhor do que leis ou tratados ou qualquer dos seres humanos. E cada um deles usa desse saber monocraticamente com relação ao seu povo…
Num oceano não muito longínquo há um arquipélago com onze Ilhas. São onze Estados (daí a maiúscula). Eles estão em guerra. Não todos contra todos, mas, como é de se esperar, divididos em alianças, embora haja um que guerreia sempre contra as coalizões que são hoje duas.
Coincidentemente todas as Ilhas, que são independentes, têm sábios como chefes.
Por isso, uma coalizão compreende uma Ilha que tem à sua testa um sábio de renome que conhece a língua de Clausewitz, outra, um veterano de ampla experiência política, a terceira, que possui o ardor de um soldado alpinista, a que se acrescenta atualmente mais uma, presidida por um sábio que se sente sem rumo porque seu líder perdeu o pé ao lavá-lo num pântano.
A ela, se associa uma quinta, encabeçada por um jovem sábio, com estudos valiosos, até ontem desconhecido e ainda hoje mal conhecido, que se preocupa atentamente com fatos que se passam num continente próximo.
Já se depreende dos perfis que essa coalizão pode a qualquer momento ser desfeita, porque seu espírito não é o dos Três Mosqueteiros – “Um por todos, todos por um” – mas personalista – “Cada um por si, acima de todos”.
A outra coalizão, menos centralizada, tem à sua frente temporariamente um sábio tão ardiloso que é comparado a uma raposa, democrata, decide por enquete. Uma das Ilhas associadas, tem como chefe um sábio sorridente que adora uma Ilha de outro arquipélago, da qual importa teorias e modas, mesmo absurdas, e é muito sensível à opinião dos bem pensantes. A terceira é dirigida por um radical de aparência avoenga, que entende ser o direito o que ele acha justo. Nela, vigora o mesmo espírito do que na outra.
A esta última coalizão, unem-se, talvez excepcionalmente, duas outras Ilhas que também são chefiadas por sábios, mas de outro gênero, que – talvez por machismo lamentável – não são levadas muito a sério pelas Ilhas parceiras, embora sejam firmes e fortes.
Como já se disse, há uma décima primeira Ilha que não se une a nenhuma coalizão, embora por força das coisas, às vezes seja seguida por uma das coalizões. Seu líder não se incomoda com isto e olimpicamente não leva em conta a opinião dos componentes de qualquer das mesmas. Sua fragilidade é o amor por um clube de futebol.
Essas Ilhas estão em guerra – já se disse – e esta guerra a cada dia cresce em escala. Apesar de seus dirigentes serem sábios versados em leis, e talvez por isso mesmo, muitas vezes guerreiam por questões jurídicas. Cada um deles sabe o que é direito melhor do que leis ou tratados ou qualquer dos seres humanos. E cada um deles usa desse saber monocraticamente com relação ao seu povo.
Entretanto, não raro guerreiam por poder – o que não é original nem incomum na história.
Poder para essas coalizões é submeter os continentes próximos a seu arbítrio.
Sim, porque essas Ilhas são belicosas e vingativas, possuem armamento pesado, podem desfazer a seu bel prazer o que é decidido nesses vizinhos, tirar-lhes a liberdade, humilhá-las, com o aplauso dos bem pensantes que transmitem notícias para todo o mundo.
Às vezes – é verdade – aliam-se a um dos continentes que têm chefes, nem sempre sábios, mas são divididos por mal querenças partidárias, de interesse ideológico sobretudo, mas em certas ocasiões menos nobres. Tal aliança também pode provir de vários interesses – mas sempre nobres – como o de mostrar sua superioridade sobre a coalizão inimiga. E, como a história registra, os liames entre coalizões não são eternos nem imutáveis, como as suas relações com os continentes próximos.
Nem sempre essas alianças dão certo, como sempre ocorre nas guerras. Ocorrem batalhas mal travadas, aliados que desertam, imprevistos que surgem, por isso, o triunfo nunca é definitivo e a guerra entre as Ilhas jamais se extingue.
Recentemente travou-se uma sangrenta batalha. Enquanto uma coalizão operava num continente, a outra desencadeou um ataque de surpresa, com o armamento mais pesado com que contava, e os desprevenidos sofreram dura derrota, com muitas perdas. Nunca até então lobos tinham comidos lobos com tanta crueldade. Bradam hoje os vencidos por vingança e já atiram nos atacantes e aos que supõem se haverem regozijado com sua derrota. Mas entre Pearl Harbour e a paz anos e anos se passaram.
Como observou uma sábia, nela quem ganha, perde e quem perde, perde. Ou seja, todos perdem, seja a vida, seja a reputação.
Ora, esta contínua guerra, como toda guerra, traz malefícios para o povo dessas Ilhas (e também dos continentes próximos). Gera insegurança, embaraça o desenvolvimento, fere direitos fundamentais, enseja arbítrios que não raro desigualam pessoas nas mesmas situações, ou deixam de atendê-las quando necessitam de apoio, até promovem racismo porque, no vale tudo, excitam pessoas de pele escura contra pessoas de pele clara. E é uma guerra em que não há armas proibidas, porque – já se apontou – não se respeitam regras escritas pelos outros e cada um tem as suas próprias.
Neste quadro, o pobre povo de todas essas Ilhas reza pela paz. Mas embora todas essas Ilhas sejam democracias, seu desejo não é ouvido pelos líderes.
Esse povo até cogita que, para pôr fim a essa guerra interminável, seja necessário criar acima dos poderes locais, uma organização internacional superior. Seria uma tentativa análoga à criação da ONU – um Tribunal que respeite leis e tratados, aja com justiça e que republicanamente não seja integrada por líderes vitalícios, para que possam ser substituídos, sem conflito, os que descuidarem dos povos e entrarem em guerras pelo poder, ou se percam acometidos de hubris, descurando então de sua missão natural e essencial.
(*) Manoel Gonçalves Ferreira Filho
2º Tenente de Artilharia R/2 – Observa guerras desde 1939 – Pesquisador da USP.
SP 9/12/20
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Manoel Gonçalves Ferreira Filho -
Professor Emérito de Direito Constitucional da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.