A próxima pedalada. Por Alexandre Schwartsman
A PRÓXIMA PEDALADA
ALEXANDRE SCHWARTSMAN
A criação de depósitos remunerados no BC para controle de liquidez abre perigosa brecha contábil no que se refere às estatísticas fiscais, permitindo que desequilíbrios orçamentários não apareçam na dívida. Para evitar novas “pedaladas”, devem ser devidamente contabilizados na dívida bruta.
PUBLICADO ORIGINALMENTE NA INFOMONEY, EDIÇÃO DE 11 DE NOVEMBRO DE 2020
Além da autonomia do Banco Central, o Senado aprovou na semana passada projeto de lei de autoria do líder do PT na casa, senador Rogério Carvalho, que cria um novo instrumento para a regulação da liquidez na economia: os depósitos remunerados no BC. Mesmo reconhecendo seus méritos, noto que há risco considerável de “maquiagem” das estatísticas referentes à dívida pública, bastante subestimado no presente contexto.
Para entender a relevância e os riscos associados a essa nova ferramenta precisamos antes entender como e por que o BC controla a liquidez no quadro atual.
A cada seis semanas o Comitê de Política Monetária se reúne e define uma meta para a taxa de juros básica, a Selic, sua principal ferramenta de política, atualmente 2% ao ano. Para garantir que a taxa Selic praticada fique próxima à meta, o BC se compromete a dar ou tomar emprestadas reservas bancária ao redor daquele valor.
Assim, se faltam reservas no sistema e a Selic tende a ficar acima da meta, o BC doará recursos ao sistema, tomando como garantias títulos públicos federais, situação muito rara hoje, mas que ocorria no início do século. Se, caso contrário, houver excesso de reservas bancárias e, portanto, a taxa Selic tender para baixo da meta, o BC toma recursos do sistema, também dando como garantia títulos públicos de sua carteira.
No primeiro caso o BC compra títulos com compromisso de revenda em determinada data; no segundo, vende títulos com compromisso de recompra. Por esse motivo, tais operações são denominadas de “compromissadas”. Como se destinam a manter a taxa de juros ao redor da meta Selic, o custo dessas operações fica normalmente ao redor dela: um pouco acima se o BC for doador de recursos; um tanto abaixo se for tomador de recursos.
Considere, por exemplo, o que ocorre quando o BC adquire dólares do mercado. Bancos entregam a moeda estrangeira ao BC que, em troca, os paga creditando as contas de reservas bancárias. Isso cria um excesso de liquidez que levaria, como vimos, à queda da Selic em relação à sua meta, contrabalançada, contudo, pelas operações compromissadas.
Sob a nova sistemática, o BC poderia conseguir o mesmo resultado utilizando-se de depósitos remunerados. O excesso de reservas bancárias poderia ser depositado junto ao BC, mantendo a Selic próxima à meta. A remuneração dos depósitos, dada pela Selic (menos uma margem), seria assim igual à remuneração das compromissadas, o que, do ponto de vista da política monetária, representaria a conhecida troca de seis por meia dúzia. Pela perspectiva do controle da liquidez, a nova sistemática é uma opção adicional.
Do ponto de vista de política fiscal, contudo, há uma diferença importante, cujas consequências são potencialmente danosas.
Note-se em primeiro lugar que o Brasil adota contabilidade própria no que diz respeito à dívida pública. O critério do FMI requer que todos os títulos públicos sejam incluídos na dívida, mas o Brasil não inclui os títulos em poder do BC; apenas aqueles usados nas operações compromissadas.
Imagine agora que o Tesouro tenha déficits recorrentes (como de hábito) e que não consiga colocar títulos (ou não queira, porque investidores demandam taxas altas para comprar papéis mais longos). Nesse caso, ele saca recursos de sua conta no BC (Conta Única) e os usa para pagar o excesso de gastos sobre receitas, bem como as dívidas que estão vencendo, elevando as reservas bancárias.
Assim, como no episódio da compra de dólares, o BC ajusta o nível de reservas por meio das compromissadas e, ao final das contas, títulos que o Tesouro não conseguiu vender para pagar o excesso de gastos e a dívida vincenda acabam aparecendo sob a forma das operações compromissadas, devidamente registradas na dívida bruta. O desequilíbrio fiscal é, portanto, corretamente capturado.
Se, porém, a adequação das reservas bancárias for feita por meio de depósitos remunerados, isso deixará de ser verdade, porque depósitos não são contabilizados como dívida. O Tesouro poderia, pois, incorrer em déficits (usando recursos da Conta Única) sem que as estatísticas de endividamento captassem o fenômeno.
Note-se que o BC pagará juros sobre os depósitos, o que reduz seus lucros e, portanto, o valor que transfere ao Tesouro. Em outras palavras, embora o BC faça o desembolso dos juros, o pagador em última instância ainda será o Tesouro, usando, na frase imortal de Armínio Fraga, “o meu, o seu, o nosso dinheiro”. Desse ponto de vista, depósitos remunerados são, na prática, dívida, tanto quanto as compromissadas.
Dado que estas atingiram pouco mais de R$ 1,6 trilhão em outubro (equivalente a um quarto da dívida bruta, contra R$ 951 bilhões em dezembro do ano passado), principalmente por força da combinação de déficits e dificuldade de rolagem da dívida, fica claro que o potencial para distorção das estatísticas fiscais é gigantesco.
As “pedaladas” do governo Dilma ocorreram precisamente porque brechas contábeis permitiram ocultar desequilíbrios orçamentários; se não quisermos repetir a experiência, será necessário garantir que novas brechas não irão aparecer.
Concretamente, os depósitos remunerados no BC devem ser incluídos nas estatísticas de dívida pública. Com isso afastaríamos o risco de uso desse instrumento para fins para os quais não foi desenhado, mantendo, porém, sua utilidade para a regulagem da liquidez na economia.
Sem isso, cedo ou tarde, testemunharemos pedaladas inesquecíveis.
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* ALEXANDRE SCHWARTSMAN – DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, BERKELEY, E EX-DIRETOR DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS DO BANCO CENTRAL DO BRASIL É PROFESSOR DO INSPER E SÓCIO-DIRETOR DA SCHWARTSMAN & ASSOCIADOS
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