Quem provoca quem? A história de uma tragédia antecipada. Por Manoel Gonçalves Ferreira Filho
QUEM PROVOCA QUEM?
A HISTÓRIA DE UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO
… Neste quadro conflituoso, um bando de exaltados teve a genial ideia de bombardear com fogos de artifício a sede da Alta Corte. Ao que se seguiu uma onda de medidas decretadas por ilustre Ministro dessa Alta Corte, promovido a inquisidor-mor…
As guerras depois de findas sempre dão lugar a polêmicas sobre quem as provocou, em busca do responsável pelos danos sofridos e/ou pela decepção com os êxitos realmente alcançados.
O mesmo se dá com as guerras políticas.
Veja-se um caso. Qualquer semelhança com fatos em curso é mera coincidência.
Esta guerra começou – não se buscando a raiz última na disputa entre Caim e Abel, nem lembrando a fábula do lobo e do cordeiro – quando um Ministro se exonerou, logo depois de uma reunião ministerial, alegando que o fazia porque seu chefe queria interferir na escolha de um chefe de polícia. Claro, um prato cheio para a oposição que requereu à Corte Suprema uma ordem para que o teor dessa reunião fosse tornado público. Nele, haveria prova da interferência.
O digno e eminente Relator da questão deliberou, brevissimamente, depois de vários dias, tal divulgação. Esta revelou que a reunião transcorrera em baixo nível, escandalizando a todos quanto ao modo pelo qual questões relevantes eram debatidas, não deixou, todavia, clara a ocorrência ou não da interferência. Em razão disto, o mesmo ilustre Relator determinou a oitiva como testemunhas de três outros Ministros, por mera coincidência oficiais do mais alto nível das Forças Armadas. Determinou mesmo que, caso se recusassem a depor, fossem obrigados a fazê-lo “debaixo de Vara”.
A expressão não está na legislação contemporânea e sim numa anterior de 188 anos, 1832, evidentemente já revogada. Claro está que foi apenas uma referência a demonstrar a cultura (indiscutível) do seu prolator. Mas causou arrepios entre os intimados e seus colegas, como se fez claro em seguida e mormente quando um dos chamados deu uma entrevista e seus companheiros publicaram um manifesto.
É verdade que a divulgação da reunião teve uma consequência inesperada. Seu objetivo era um, seu resultado foi outro. De fato, nela, um Ministro se desmandou e chamou de “vagabundos” e, mais, disse que deveriam ser presos, os membros da Alta Corte. No momento deveria ter sido advertido, quiçá de pronto demitido. Ou, ao tomar consciência das consequências que da injúria decorreriam, como decorreram, deveria ter tido a hombridade de exonerar-se. Ao menos para não causar problemas para o chefe a quem se devota.
(Agora, saiu, certamente tarde, dado o desgaste que causou.)
Pouco depois, o mesmo ínclito magistrado, ao receber outra ação em que se pedia que o chefe do governo entregasse para exame o seu telefone, mandou – legalissimamente – pedir informações à autoridade vista como responsável por ato que não praticava. Claro está que não determinou a entrega do telefone. Foi, porém, mal interpretado, como já acontecera com o “debaixo de vara”, o que provocou uma resposta fazendo referências a “consequências imprevisíveis”.
Quais? Não foi explicitado, mas tanto poderiam ser ligadas ao caso, como a assuntos delicados de relações internacionais.
O mesmo insigne magistrado. dias depois, divulgou um texto em que advertia o mundo de uma ameaça nazista. Quis indicar um precedente, apenas para mostrar que não sabia como e por que ocorrera a chegada ao poder do nazismo, o que não decorreu das virtudes da Constituição de Weimar e sim das suas vulnerabilidades. Igualmente, no exagero que o tomou, demonstrou desconhecer o núcleo da ideologia que mencionava. Pior. Ofendeu as Forças Armadas que, num passado não remoto, haviam derramado seu sangue para combater essa ideologia nefanda.
Dias depois, um jurista eminente – por sua própria conta – formulou a tese de que haveria nas instituições do país um poder moderador em mãos das Forças Armadas. A tese certamente não se coaduna com a Lei Magna do país, mas caberia talvez numa apreciação histórico-sociológica da vida dessa nação. Ou ter lugar num debate acadêmico.
… Apenas, a situação causa o temor de que todos e, sobretudo, à Pátria, muito percam e, antes de tudo, a democracia que todos afirmam respeitar. Esta, contudo, se vivifica pela razão, não pela paixão; pelo acordo, não pelo conflito; pela concórdia, não pela radicalização.
Tal tese justificaria um rompimento institucional, hipótese que foi repetidas vezes rejeitada – até como “ultrajante” – por aqueles a quem a doutrina daria o referido poder. Mas continuou em ebulição, o que levou um dos membros do governo a observar que não “se esticasse a corda” (versão elegante de que “não se cutuca a onça com vara curta”).
Não bastou, porém, a resposta. Dois eminentes e sábios magistrados houveram por bem – monocraticamente como sempre – emitir sua opinião sobre o papel das Forças Armadas, dando uma lição que não parecia necessária a seus destinatários.
De permeio com isto foi a julgamento na Alta Corte uma questão controversa sobre a abertura de um Inquérito relativo a “fake news”, cumulada com sua relatoria atribuída a um brilhante Ministro, sem o sorteio entre todos os membros da casa. A controvérsia fora levantada pela oposição ao governo. Nela, como era de se esperar, a constitucionalidade foi apontada pelo eminente Relator e veio a ser confirmada pelo Plenário contra um único voto.
Entretanto, por mera coincidência, na Corte eleitoral, a questão da anulação da eleição presidencial anterior estava em discussão. Era uma questão de importância ridícula e já havia o voto do Relator pela sua rejeição. Parecia coisa ultrapassada. Contudo, não foi ela julgada porque o mesmo emérito Relator da ação das “fake news” requereu uma perícia com o objetivo de apurar a autoria da irregularidade posta nela em causa e o não menos emérito Relator do Inquérito já referido pediu “vista”, suspendendo o julgamento. E este ainda está pendente.
Em reação, os que seriam atingidos pela anulação e o comandante das Forças Armadas declararam por escrito que “ordens absurdas não se cumprem” (lição extraída dos julgamentos de Nuremberg), embora não houvesse ordem alguma explicitamente em causa.
Neste quadro conflituoso, um bando de exaltados teve a genial ideia de bombardear com fogos de artifício a sede da Alta Corte. Ao que se seguiu uma onda de medidas decretadas por ilustre Ministro dessa Alta Corte, promovido a inquisidor-mor.
Ao escrever estas linhas, não se conhece o resultado do conflito.
Não se vê, nele, prudência – o direito para os romanos era jurisprudência – como nem – a bem da verdade – a governança se dirigir ao bem comum, perdida em declarações disparatadas, debates inúteis e posicionamentos contestáveis.
Apenas, a situação causa o temor de que todos e, sobretudo, à Pátria, muito percam e, antes de tudo, a democracia que todos afirmam respeitar. Esta, contudo, se vivifica pela razão, não pela paixão; pelo acordo, não pelo conflito; pela concórdia, não pela radicalização.
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Manoel Gonçalves Ferreira Filho – Professor Emérito de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
SP 18/06/2020.