Faria Limer. Por José Horta Manzano
Mais de uma centena de propriedades foram desapropriadas para permitir o alargamento da rua. Ao final da década, apesar dos buracos que ainda obstruíam o leito carroçável, a nova avenida foi aberta. Em homenagem ao prefeito falecido pouco antes, ela recebeu o nome de Faria Lima.
Até o começo dos anos 60, a Iguatemi, em São Paulo, era uma ruazinha de bairro, com uma fileira de sobradinhos enfileirados de um lado e de outro. Aquela região era um pouco afastada do centro.
Chegava-se lá depois de uma boa viagem desde o centro. Numa reminiscência do tempo em que o grosso da população vivia na zona rural, afastada do centro do povoado, o centro de São Paulo era chamado de “cidade”. “Hoje fui à cidade”, “Meu pai trabalha na cidade”, “Ah, pra comprar isso, só na cidade” – eram frases que se ouviam com frequência. Basta substituir “cidade” por “centro”, e o significado atual aparece.
A Rua Iguatemi era um pouco longe da “cidade”. Na euforia dos anos 60, decidiu-se que a expansão da capital seria direcionada para o oeste e para o sudoeste. Meio às pressas, sem grande planejamento, a (então) estreita rua Iguatemi foi escolhida como futuro eixo de circulação.
Mais de uma centena de propriedades foram desapropriadas para permitir o alargamento da rua. Ao final da década, apesar dos buracos que ainda obstruíam o leito carroçável, a nova avenida foi aberta. Em homenagem ao prefeito falecido pouco antes, ela recebeu o nome de Faria Lima.
Cinquenta anos mais tarde, os sobradinhos são apenas uma lembrança distante. A avenida está hoje coalhada de prédios altos que concentram empresas do setor terciário, como bancos, startups, empresas de informática, serviços especializados.
Já faz algum tempo que, num espírito oscilando entre admiração e galhofa, profissionais ligados a essas empresas de alto padrão são chamados de “Farialimers”. Alguns dias atrás, a imagem de doutor Guedes, nosso ministro da Economia, foi afixada em cartazes gigantescos, acompanhada da frase “Faria loser”, num evidente espírito de deboche que faz jogo de palavras mesclando o nome da rua e o termo inglês “loser” (=perdedor).
Passaram-se poucos dias. Refeitos do susto, autoridades (não sei quais, mas certamente com nosso dinheiro) mandaram cobrir as vergonhas da nação. Afinal, não se pode expor assim, de qualquer maneira, a inabilidade de um ministro.
A imagem que agora esconde o rosto sofrido do ministro é a de uma estranha bandeira brasileira. Digo estranha porque está fora das proporções oficiais. Não precisa ser doutor pra ver que o verde está espichado de um lado e do outro.
Os jornais dão hoje a notícia. Falam do cartaz jocoso que zombava do ministro. Falam da bandeira que substituiu a afronta. Ninguém, no entanto, se preocupou com o fato de a bandeira estar distorcida. A bandeira, minha gente, é símbolo nacional oficial. Seu desenho, suas cores e suas proporções são rigorosamente definidas em lei. A regulamentação vem do tempo dos militares, mas vigora, visto não ter sido abolida. Bandeira nacional não é pano decorativo. Como todo símbolo oficial tem de ser usada conforme manda o figurino. Em princípio, todo mau uso afronta a lei e está sujeito a punição. Mormente quando tiver sido orquestrado por autoridades, como parece ser o caso.
No entanto, no entanto, o pior passou em branco. A Folha de São Paulo, que publicou a foto da esquina com a bandeira e narrou a situação com abundância de detalhes, não viu o que ninguém gosta de ver. Na foto da bandeira, bem no centro, aparece uma pobre criatura, um trapo humano, deitado na calçada da avenida. É visivelmente um morador de rua – perdão! um indivíduo “em situação de rua”, como a falsa pudicícia obriga a dizer hoje.
A brincadeira do “Faria loser” não passa de estudantada. A cobertura das vergonhas, apesar de ser mais truculenta e menos sorrisonha, também não mata ninguém. A verdadeira vergonha, que passou em branco, transparente como tudo aquilo que a gente não gosta de ver, é o cidadão estirado no chão, bem no centro da foto, como um traço horizontal a sublinhar o lema “Ordem e Progresso”. Certamente a criatura não está lá pelo prazer de dormir numa cama dura pra aliviar as dores de coluna.
Enquanto dramas como esse continuarem a passar despercebidos, quase como atrapalhando a foto, de pouco vão adiantar a crítica leve feita contra o ministro incapaz e a repressão peremptória da autoridade que prefere ver a parede limpa, mas se desinteressa da sorte da ralé.
Governantes – e povo – que dão mais importância à ilusão de muro impecável do que à feia realidade de um povo desgraçado não merecem dormir em colchão quentinho e macio.
____________________________________________________________
JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
__________________________________________________________________________
O trapo humano é uma justíssima homenagem, ainda que involuntária, aos extraordinários feitos desse sujeitinho patético e doentio ocultado ali (não pela pudicícia da bandeira, mas pela ‘puticícia’ de quem desejava aprovar, no Congresso Nacional, uma MP do Ministério da Economia que precarizaria ainda mais – como se possível – as miseráveis condições de trabalho no país). Por sorte – e deve mesmo ter sido apenas sorte – 47 senadores disseram, em raro lapso de decência, um irrefutável ‘não’ a mais esse atentado à condição humana, derrotando, assim, 27 governistas para quem pobres trapos humanos já nem mais humanos são. São apenas trapos. Paulo Guedes só não está entre aqueles que se divertem ateando fogo aos corpos desses trapos infelizes pelas ruas porque não anda pelas ruas. De fato, depois da devastação que promoveu, nem sabe se elas ainda existem… Que bom para ele! Imagine o risco: encontrar uma doméstica que quer ir à Disney, um filho de zelador que pretende cursar universidade ou, pior, alguém que quer apenas comprar feijão na terra em que o comprador de um simples fuzil tem de se explicar.
(Em tempo: os jovens da Faria Lima não têm o direito de ridicularizar esse sujeitinho, tanto quanto os velhos não têm o de censurar o escárnio. O sujeitinho não entregou o produto por eles encomendado – um estado econômico que seria muito pior do que o que já temos -, mas a culpa, afinal, não é apenas dele e de sua abismal incompetência: verdade se diga, Bolsonaro o sabotou tanto quanto pôde, e o Congresso, como no caso acima lembrado, perpassado às vezes por algum espasmo de espírito público, acaba com uma bela ideia do sujeitinho que tinha tudo para fracassar.)