Jaboticabas e dinossauros brasileiros. Por Antonio Silvio Lefèvre
JABOTICABAS E DINOSSAUROS BRASILEIROS
ANTONIO SILVIO LEFÈVRE
De como nossa incapacidade de ver os absurdos que nos parecem “normais” nos leva a incorporar modismos mais absurdos ainda.
Lá pela virada do milênio, levei para conhecer o Rio de Janeiro um americano, diretor da University of Michigan Business School, cujas conferências eu organizava no Brasil. Foi curioso ver como um estrangeiro podia observar nossas coisas com um distanciamento do qual não somos capazes, de tanto que nos acostumamos com o que achamos “normal” em nosso país. Depois de se deliciar com as paisagens deslumbrantes das praias do Rio, ao nos aproximarmos das belas montanhas que compõem a paisagem carioca e passarmos por um primeiro morro, repleto de favelas, ele me diz: “Puxa, deve ter uma vista maravilhosa lá de cima. Esses terrenos devem ser muito caros… Como é que essa gente que parece bem pobre, conseguiu pagar para morar lá em cima?….”
… com a febre de imitar tudo o que se faz em outros países, sem atentar para as nossas diferenças, o Brasil tem sido pródigo em inventar novas jabuticabas, às vezes a nível federal, mas também estadual ou apenas municipal.
Tendo a impressão de estar respondendo à pergunta de um marciano, expliquei então que esses moradores não são donos dos terremos, que eles os ocuparam. “E como a polícia deixou tomarem conta de um terreno que não era deles?”, me perguntou então o americano, deixando-me na difícil situação de tentar explicar a ele algo que para nós é tão corriqueiro que nos parece estranho que para outros seja incompreensível.
Este episódio me abriu os olhos para a necessidade de passar a olhar com o distanciamento de um estrangeiro para essas e tantas outras coisas que são tão típicas do Brasil, algumas tão exclusivas que as denominamos “jabuticabas”, a fruta que, aprendemos, só existe em nosso país.
Reconhecimento de firma, por exemplo, é algo que já tive bastante dificuldade de explicar do que se trata a estrangeiros. É uma jabuticaba já antiga, como o conceito de “desquitado”, que figurava em meus documentos, este felizmente já enterrado há vários anos.
Mas, nos últimos tempos, com a febre de imitar tudo o que se faz em outros países, sem atentar para as nossas diferenças, o Brasil tem sido pródigo em inventar novas jabuticabas, às vezes a nível federal, mas também estadual ou apenas municipal. Por exemplo, a permissão que foi dada para as motocicletas andarem entre os carros, com sério perigo para os motoqueiros e tornando quase impossível para os carros mudarem de faixa. Hoje nos acostumamos tanto a isso que tendemos a achar “normal”. Mas a quantidade de acidentes com vítimas dessa prática demonstra claramente o absurdo desta permissão.
E agora temos outra jabuticaba, desta vez importada… com a moda das “bikes” copiada de países com trânsito bem mais civilizado que o nosso, como a Holanda. Ora, o que vimos em São Paulo, foram poucos “corredores” de bikes funcionando adequadamente, porque situados em áreas planas, como nos largos canteiros fora das pistas de automóveis da Avenida Faria Lima. E por outro lado, vemos centenas de corredores construídos em regiões com ladeiras que, por motivos óbvios, permanecem completamente vazios, servindo apenas para atrapalhar o trânsito dos carros, porque lhes subtraindo uma pista… Os numerosos acidentes com bicicletas também estão a demonstrar a inadequação deste veículo como meio de transporte numa cidade montanhosa como São Paulo, bem diferente de Amsterdam.
Com o agravante desta prática ter se tornado uma espécie de “rebeldia” da moda, fazendo com que muitos usuários “estacionem” provocativamente as bikes na perpendicular nas ruas, com a óbvia intenção de atrapalhar as manobras e o estacionamento dos carros.
O mais recente desses modismos, as patinetes elétricas, só veio para criar ainda mais problemas e gerar mais riscos, com gente circulando nelas pelas calçadas ou mesmo pelas ruas, por vezes até na contramão e depois as abandonando de qualquer jeito e em qualquer lugar.
Tivesse eu aceito o convite que me foi feito na administração Mario Covas como prefeito de São Paulo para dirigir a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) e tivesse feito carreira nesta área em vez de continuar no mundo editorial…. com certeza eu não deixaria passar esses modismos…
Da mesma forma como tanta gente tende a aceitar com naturalidade qualquer dessas modas claramente inadequadas, como receio de não ser “modernoso” ou “avançado”, poucos são aqueles que atentam para o fato de que aquilo que era “moderno” em outros tempos, hoje se tornou obsoleto e deveria ser radicalmente transformado. É o modismo de cultuar os “dinossauros”. O exemplo mais notável de dinossauro que deveria ser enterrado é o aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Essa história eu conheço bem porque este aeroporto foi aberto em 1936, construído sobre as terras de uma chácara pertencente então ao pai de minha sogra, que viajava a este lugar distante do centro, em Vila Congonhas, para passar ali tranquilos fins de semana. Claro que ele não gostou nada de ter sua chácara desapropriada para fazer o aeroporto e receber uma ninharia do governo. Mas é claro também que, do ponto de vista da cidade, fazia todo sentido ter seu aeroporto ali, numa área da sua então periferia, sem que os aviões arriscassem de fazer barulho sobre a vizinhança e, pior ainda, caíssem sobre casas e prédios próximos, pois não existiam.
Raras e poucas vozes se levantam contra este título de campeão mundial dos juros. A maior parte da imprensa tende a aceitar essa gigantesca jabuticaba como sendo mais um daqueles absurdos que se consideram como “normais’.
Hoje, contudo, a cidade é outra… e os aviões sobem e descem sobre bairros densamente habitados, fazendo um barulho insuportável para quem pretende dormir (como eu, no Brooklin) e obrigando professores das escolas das redondezas (como a Waldorf, dos meus netos) a interromperem as aulas a cada passagem de avião, pois os alunos não ouviriam suas palavras. Sem falar nos aviões que já caíram em cima de prédios e casas nas proximidades, inclusive sobre o prédio da própria TAM, contando-se já os mortos às centenas pelos diversos acidentes.
Com tudo isso, quem ousa afirmar que Congonhas deveria ser simplesmente fechado, transformado em parque ou, quem sabe, devolvido à família do antigo dono? Ao contrário, a moda é só ampliar Congonhas. E que tal fechar também o aeroporto Santos Dumont no Rio de Janeiro, tão central quanto Congonhas e onde um tio meu já teve que sair nadando de um avião que ultrapassou a pista e caiu no mar?
Não, ninguém ousa mexer com Santos Dumont porque ele é tido como um cartão postal do Rio, como Congonhas é visto como monumento de São Paulo. Quando nada mais são do que velhas jabuticabas que já foram muito comidas e mastigadas e está na hora de serem jogadas no lixo. Sim, porque cultuar dinossauros é mais uma das nossas jabuticabas mais à moda. Afinal, que outro país pode se gabar de ser presidido por um deles?
Finalmente, o maior de todos os dinossauros, que também é a jabuticaba nº 1 do Brasil: a taxa de juros real cobrada pelos bancos, de mais de 10% ao mês, enquanto o governo festeja a mísera taxa Selic de 5% ano que só ele paga, em retribuição à autorização que dá aos bancos para espoliar a população e com isso permitir que estes tenham lucros astronômicos enquanto o resto do país patina no prejuízo.
Raras e poucas vozes se levantam contra este título de campeão mundial dos juros. A maior parte da imprensa tende a aceitar essa gigantesca jabuticaba como sendo mais um daqueles absurdos que se consideram como “normais’.
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ANTONIO SILVIO LEFÈVRE – é sociólogo (Université de Paris), editor e livreiro. Interpretou Pedrinho na 1ª adaptação do “Sítio do Picapau Amarelo” para a TV, em 1954. Veja no Museu da TV.