(Cautela para não voltarmos ao tempo da Inquisição)
MERALDO ZISMAN
O nono testamento diz: “Não darás falso testemunho contra teu próximo”. Não dê ouvidos à maledicência. Não acompanhes o mau, que presta falso testemunho. Pelo direito judaico, não servirá como testemunha pessoa envolvida em caso de roubo ou outros. crimes, pois a testemunha deve manter sua ficha limpa durante toda a vida.
A operação Lava Jato desperta grande interesse, inclusive no que tange a metodologia jurídica, que gera cada vez mais debates sobre sua ética, principalmente entre os operadores do Direito.
Escrevo estas linhas para não cair no pecado da omissão com tantos denuncismos premiados e outros tantos, não recompensados. Devo ter herdado essa triste premonição dos meus ancestrais. Gente como eu, de origem judia, descendente de quem viveu milênios de perseguição, nasce com um tipo de sismógrafo capaz de detectar genocídios, antes que eles ocorram. Explico melhor.
Escrevi um livro que intitulei Desculpe Qualquer Coisa. Ed. Livro Rápido. Olinda. Pernambuco, 2010, onde exponho sobre os visitadores da Doutrina da Fé (Tribunal do Santo Oficio) desde o tempo do Brasil colônia, cuja ação tornou comum, ao término de uma tarefa, principalmente nas classes mais humildes, ao receber a paga pronunciar: — Obrigado, desculpe qualquer coisa. Com licença… senhor.
Mas vamos voltar às perseguições judaicas na velha Europa, por sinal sempre na moda. Agora tudo se repete na França.
Meus avós e mesmo muito antes deles existirem, precisamente na Bessarábia (território entre o sul da Moldávia e o norte da Ucrânia, região também conhecida como “Bessarábia histórica), onde viviam havia séculos, quando se aproximava um pogrom (ataque organizado contra uma comunidade judaica, com grande destruição e morticínio, insuflado ou tolerado pelas autoridades do país), os cossacos e seus cavalos se mostravam mais açodados. Inquietos. Não havia nada que os acalmasse. Nem a vodca que tomavam. Nem a ração extra para suas montarias. A agitação pairava no ar.
Dois ou três dias antes de os cossacos, junto com os mujiques (camponês em russo), começarem a matança dos judeus, os velhos diziam: “O pogrom vem aí”…
Apesar de nunca ter assistido nem sido vítima dessas matanças, herdei esta aptidão inata. Veio no meu genoma. O medo era grande!
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Dentro do judaísmo, através da literatura do Talmude, o conjunto da lei civil e religiosa do judaísmo pós-bíblico, composto por duas partes: a ¨Mishná¨, (a lei propriamente dita, escrita em hebraico), e a ¨Guemara¨, os comentários e interpretações da Mishná escritos em aramaico. O Talmude é formado por 63 livros legais, éticos e históricos e pelas leis da Torá (Torá é o conjunto dos primeiros cinco livros da Bíblia, e é a base da religião judaica). A palavra hebraica Torá significa lei, ensino ou instrução. Nos países cristãos a Torá é conhecida como Pentateuco.
De acordo com a Lei Judaica, esse tipo de testemunha, motivado pelos fatores da delação, será capaz de produzir mentiras, invenções e transmitir informações seletivas. Essa análise nos faz questionar: como podemos acreditar nos testemunhos obtidos dessa maneira? Até que ponto se deve considerar as falas dos delatores como verdade?
A delação premiada que se tornou tão popular na operação Lava Jato é baseada na negociação entre pessoas envolvidas em um crime e as autoridades, com objetivo de facilitar as investigações dos oficiais da lei. O nono testamento diz: “Não darás falso testemunho contra teu próximo”. Não dê ouvidos à maledicência. Não acompanhes o mau, que presta falso testemunho. Pelo direito judaico, não servirá como testemunha pessoa envolvida em caso de roubo ou outros. crimes, pois a testemunha deve manter sua ficha limpa durante toda a vida.
Mas por que a rigidez sobre esse conceito?
Em casos assim, é nítido o interesse do delator em anular ou aliviar sua pena. Como acreditar na isenção de seu depoimento? De acordo com a Lei Judaica, esse tipo de testemunha, motivado pelos fatores da delação, será capaz de produzir mentiras, invenções e transmitir informações seletivas. Essa análise nos faz questionar: como podemos acreditar nos testemunhos obtidos dessa maneira? Até que ponto se deve considerar as falas dos delatores como verdade?
O que tenho assistido através da mídia do meu Brasil faz com que se acenda a luz vermelha do aparelhinho biológico com o qual nasci. E ela acendeu-se muito antes das passeatas dos Blackblocs e dos rolezinhos e das eleições presidenciais.
Como lembrei acima, ainda hoje é comum, ao término de uma tarefa, principalmente nas classes mais humildes, ao receber a paga pronunciar: — Obrigado, desculpe qualquer coisa. Com licença… senhor. Dizem os estudiosos dos costumes luso-brasileiros, principalmente no Sertão Nordestino ou na região de Belmonte, no norte de Portugal, onde essa expressão é mais empregada, ser costume motivado pela grande concentração de judeus e cristãos-novos em Portugal durante a Idade Média, sendo essa forma de agradecimento um resquício do medo da perseguição do temido Tribunal do Santo Oficio, que aceitava denúncias anônimas e todos precisavam estar atentos para falsas denúncias inquisitórias.
Portanto, como descendente de judeu, acho melhor terminar esta crônica-aviso suplicando ao leitor: ‘DESCULPE QUALQUER COISA’… por estas mal traçadas linhas e desculpem-me as autoridades constituídas. O Homem não mudou. A anatomia é a mesma. Com ou sem Internet. A desgraça do preconceito é a mesma. A Lei Áurea ou outra Lei qualquer, nova ou velha, não diminui o preconceito, tornado ainda mais cruel pelas consequências do falso testemunho.
Meraldo Zisman– Médico, psicoterapeuta. É um dos primeiros neonatologistas brasileiros. Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Vive no Recife (PE).