O futuro da informação. Por José Paulo Cavalcanti Filho
O FUTURO DA INFORMAÇÃO
JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO
… Tornando livres opinião (e charges). Os jornais (ou o que substituirá os jornais) só poderão noticiar fatos. Sob pena de multas severíssimas. Enquanto nós, indeterminados cidadãos comuns do povo, poderemos dar nossa opinião sem nenhuma limitação. Assim será o futuro, segundo penso.
O futuro começa longe. No passado. Como previu Orwell, “Quem controla o futuro/ Controla o presente/ Quem controla o presente/ Controla o futuro” (em 1984). É a “visão tríptica do tempo”, da qual falava recorrentemente Gilberto Freyre. Com relação à informação, bom ver isso nesses três tempos.
O PASSADO. “Uma folha de mim atiro para o Norte/ Onde estão as cidades de ontem que eu sempre amei”, Pessoa (n’O Guardador…). Na Ditadura, havia censura. Braba. Que sobreviveu algum tempo mais, na redemocratização. Por exemplo. Músicas censuradas, só a dos interiores do Nordeste, encontramos, em 1985, mais de 500. Segue um exemplo.
FÁBRICA DE BONECA
TEM UMA CASA PRA ALUGAR
NA PRACINHA FREI CANECA
SE ALGUÉM INTERESSAR
FALA COM DONA NENECA
ELA SÓ ALUGA O FUNDO
PORQUE NA FRENTE, RAIMUNDO
USA PRA FAZER BONECA
O SEU RAIMUNDO
QUE É MARIDO DA NENECA
QUASE JÁ NÃO SAI DE CASA
SÓ FABRICANDO BONECA
PRA AJUDAR SEU MARIDO
A MULHER FOI LHE FALAR
VOCÊ NÃO USA O FUNDO
ENTÃO ME DEIXE ALUGAR
RAIMUNDO DISSE A MULHER
ATRÁS FAÇA O QUE QUISER
SÓ NÃO DEIXE ESTRAGAR
Autoria: Clodomiro Jacinto da Silva
Tem sentido censurar algo tão singelo? Ou veja-se o caso do roqueiro Léo Jaime. Que a Polícia Federal quis prender, por ter registrado uma letra de música (Sônia). E cantar, em público, outra.
SÔ N I A
(B. Webb – Léo Jaime)
SÔNIA NÃO FICA ME AGARRANDO
VOCÊ ESTÁ SE EXCEDENDO
SÔNIA
SÔNIA NÃO FICA ME EXCITANDO
QUE EU TÔ DE SUNGA
SÔNIA
SÔNIA E É POR VOCÊ QUE EU ME PERTURBO
PENSANDO EM VOCÊ ME VEM A SENSAÇÃO
SEM PERCEBER EU JÁ FIQUEI NA MÃO
SÔNIA, EU TE ADORO
SÔNIA E É POR VOCÊ QUE EU ME MASTURBO
PENSANDO EM VOCÊ ME VEM A SENSAÇÃO
SEM PERCEBER EU TÔ COM O TAL NA MÃO
SÔNIA EU TE ADORO
SÔNIA,
VAMOS NESSA FESTA
FAZER UM TRENZINHO
VOCÊ VAI NA FRENTE QUE EU VOU ATRÁS
DANÇANDO HULLY-GULLY E TUDO MAIS
SÔNIA,
VAMOS NESSA FESTA
FAZER UM TRENZINHO
VOCÊ NA FRENTE E EU ATRÁS
E ATRÁS DE MIM UM OUTRO RAPAZ
AGORA EU TOPO TODAS
E LIBERO GERAL
SÔNIA, EU TO COM ÁGUA NA BOCA
EU SEMPRE ESTIVE A FIM
E VOCÊ SABE DISSO
EU SÓ QUERO ME DAR BEM
NÃO QUERO COMPROMISSO
SÔNIA, MEU AMOR EU TE AMO
EU TRANSO CUNNILINGUS
E SEXO ANAL
SÔNIA, VOU CAIR DE BOCA
EU SEMPRE TIVE A FIM
E VOCÊ SABE DISSO
EU SÓ QUERO TE COMER
NÃO QUERO COMPROMISSO
SÔNIA MEU AMOR EU TE AMO
Destaque, também, para os relatórios que se fazia naquele tempo. Ah, os relatórios!… Para uma pálida ideia, segue esse exemplo.
RELATÓRIO DA CENSURA FEDERAL
Assunto: Apresentação de peça teatral com texto modificado.
“Em 31/08/85, ao assistir o Jornal “MG TV”, 1a Edição, foi anunciada a estreia da peça teatral: “BRASIL, AH SE EU FOSSE FELIZ”, de Nilo Cezar Martins Tavares, no Fórum da Cultura, em Juiz de Fora.
Meu dever profissional levou-me a assistir a peça em questão.
Cheguei ao local, antes do horário de início do espetáculo, assentei-me, tranquilamente e esperei o começo da apresentação, que ocorreu por volta das 21h.30min.
A cena inicial apresentava um homem de farda verde-oliva, com uma espécie de chicote na mão, perseguindo um outro, caracterizado de presidiário, com ameaças de tortura. Esta cena e outros acréscimos não constavam do texto original, aprovado pela Censura Federal.
Ressalte-se que o espetáculo foi encerrado com o grupo de atores sambando e cantando música carnavalesca, só que a inclusão da Bandeira Nacional, servindo de estandarte de escola de samba, não constava do original aprovado.
Em virtude das irregularidades apontadas, foi lavrado um Auto de Infração”.
Bem se poderia dizer, com Cervantes “Quisera que os censores fossem mais misericordiosos ou menos escrupulosos” (no Quixote).
Para não ir mais longe, basta lembrar que quiseram incomodar o médium Chico Xavier. Trecho do relatório oficial, sobre ele: “Estivemos com o querido sensitivo lá pelas duas horas da manhã. Ao nos atender, sobre o assunto que ora confidencialmente relato ao estimado Secretário-Geral, com imparcialidade, e lealdade de princípios, disse-nos que a legislação brasileira cassa a nossa cidadania nacional”.
No fim, tudo acabou bem. As músicas foram liberadas. As peças, todas, também. Ninguém foi preso. Nosso querido médium não foi incomodado. E esse momento negro da nossa história findou, Graças ao bom Deus. Como dizia Nietzsche “O veredicto do passado é sempre o veredicto de um oráculo. Você só o compreende se for um arquiteto do futuro, ou um conhecedor do presente” (em Considerações inatuais).
O PRESENTE. “O presente é só uma rua onde passa quem me esqueceu…”, Pessoa (Realidade). Depois da censura, com informação de menos, veio informação demais. No movimento pendular da história, com suas sístoles e diástoles. Democracia, todos sabem, é informar. Mas é, também, não informar. Há grande conjunto de situações que nenhum país do mundo torna público. Como efetivos militares. Situações protegidas por reserva legal (Direito de Família, Estatuto do Menor). Documentação de fronteiras. Sigilo profissional. Advogados e médicos não podem tornar públicas conversas sobre seus clientes. Padres não podem, nas missas, fazer relatórios de suas confissões. Documentos internos do governo só devem ser divulgados no tempo certo. Em todos os países é assim. Se um jornal souber que amanhã, às 20 horas, na Rua C, nº 20, a Polícia vai dar batida para prender traficantes que lá mantém um laboratório de cocaína, ele divulga? Caso sim, já sabemos o que vai acontecer. O local vai estar limpo. Sem ninguém. É preciso bom senso, ao tratar desses assuntos. Que não podem ser reduzidos à tese de que cabe apenas ao agente público, o dever de segredo. Em democracias maduras o interesse coletivo, que obriga esses agentes, vincula também a imprensa. Embora ela pense (e diga) que não. Precisamos conversar sobre esse tema com mais calma.
O FUTURO. “Outra folha de mim atiro ao Ocidente/ Onde arde ao rubro, tudo que talvez seja o futuro,/ Que eu sem conhecer, adoro”, Pessoa (n’O Guardador…). A liberdade de consciência vai se afirmar sobre tudo. Inclusive o politicamente correto, que vai se limitar a só proibir ofensas. Vamos poder dizer o que quisermos, e quando quisermos, sem riscos de ser presos. O Annemberg Institute elaborou projeto de reforma da Lei de Imprensa americana (Libel Reform Act), não aceito pelo Congresso. É pena. E tão certa é, que vai vigorar, dentro de 100 anos, em todos os países. Tornando livres opinião (e charges). Os jornais (ou o que substituirá os jornais) só poderão noticiar fatos. Sob pena de multas severíssimas. Enquanto nós, indeterminados cidadãos comuns do povo, poderemos dar nossa opinião sem nenhuma limitação.
Assim será o futuro, segundo penso.
P.S. Resumo de conferência realizada no Arquivo Público de Pernambuco, em 30/3/2019.
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José Paulo Cavalcanti Filho – É advogado e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade. Vive no Recife.
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