CONHECIMENTO

A revanche do inconsciente. Por Aylê-Salassié F. Quintão*

A revanche do inconsciente

Aylê-Salassié F. Quintão

… Hoje o Presidente é um latifundiário, amanhã um intelectual, depois um sindicalista, um guerrilheiro e, pelo fato da democracia brasileira não gerar estadistas, sempre se desembocou nos militares. Parece serem eles os guardiões da Constituição, e não o Supremo Tribunal Federal…

A Nação está próxima de empossar um novo Governo. As expectativas são logo violentadas por uma gratuita, maldosa a analógica insinuação, segundo a qual o vice é quem vai governar. Chega-se, portanto, a 2019 desafiado por, no mínimo, setenta – dos 130 anos – de história republicana, marcados por uma instabilidade política cultuada, pela corrupção endêmica e pelas  incertas projeções de futuro. As novas gerações de brasileiros – a maioria fora do sistema produtivo – continua seu percurso digital, certa de que os planos de governo não lhes reservam qualquer alternativa.

Nesse período em causa, por aqui não aconteceu nada. Fora de nossos limites, vieram  a  segunda guerra mundial, a ocupação e o desmanche do leste europeu, a recuperação da Europa e do Japão, a guerra do Vietnam, do Afeganistão, a crise do petróleo, a revolução eletrônica, os conflitos chineses, o fim do comunismo e do Estado Islâmico. O Brasil foi marcado por idas e vindas nos descaminhos do nacionalismo, do desenvolvimentismo, da dependência associada periférica, da globalização, da modernidade e pelo caos, sempre batendo de frente com as esperanças do cidadão comum.

Hoje o Presidente é um latifundiário, amanhã um intelectual, depois um sindicalista, um guerrilheiro e, pelo fato da democracia brasileira não gerar estadistas, sempre se desembocou nos militares. Parece serem eles os guardiões da Constituição , e não o Supremo Tribunal Federal.  Difícil explicar o por quê de  o País não se desintegrar. Salva-nos, provavelmente, a unidade territorial   e o idioma único.

Os projetos de Nação tentados nas constituições de 1946 e 1988  e os planos de desenvolvimento trienais ou quinquenais foram trocados sucessivamente por emendas constitucionais, iniciativas casuísticas e ideológicas. Por aqui, tudo é efêmero. Os investidores estrangeiros sabem disso. Daí que, apesar do Orçamento chegar a quase 2 trilhões de reais, não se pode prever investimentos de mais de R$ 24 bilhões, em 2019. Começa-se o exercício com um déficit de R$ 159 bilhões, e um rombo nas contas públicas de quase R$300 bilhões. Não haverá espaço de governabilidade senão para remendar a desarrumação do sistema promovida pelos governos anteriores, que geraram PIBs falsos, desemprego e juros que tornam o dinheiro inacessível.

Provocou-se cinicamente  a instabilidade econômica e efeitos éticos disruptivos, que um grupo de juízes de instâncias superiores, incorporando falsos empoderamentos,  passaram a capitanear, via fragmentação da integridade jurídica da Nação, detendo-se em cautelares destinadas a proteger corruptos, criminosos condenados e personagens moralmente menores.  Naufraga-se, ludicamente, em um mar de ações e interpretações desvinculadas da realidade ou da responsabilidade com a erradicação da pobreza ou a libertação do país da sua condição histórica de subdesenvolvido.

…Acreditando-se já globalizados, os trabalhadores assumem a preguiça macunaímica, optando por paralisações prolongadas, que dilapidam as bases da economia, ao invés de formar uma grande frente de trabalho, como ocorreu nos EUA e na Rússia durante a guerra.

Com a intromissão de quase cem partidos políticos – registrados e clandestinos – estabelece-se, conscientemente, um modelo jurídico, descompromissado com a tal harmonia entre Poderes. Os dirigentes emergem, em meio à criminalidade, picadeiros, corporações de ofício ou de classe. Cada um quer  governar, legislar e julgar, de conformidade com as suas convicções pessoais. Não há nenhuma preocupação com efeitos coletivos, muito menos com a configuração de uma comunidade nacional. As emendas milionárias dos 600 parlamentares ao orçamento da União desafiam a ética. A luta política é, ortodoxamente, voltada para a tomada do Poder. E só. Todos de olho nos cofres do Estado.

Turbinam-se apenas vantagens pessoais, em cínico desafio ao futuro. Em dois dias como substituto na Presidência da República, Rodrigo Maia, presidente da Câmara, autorizou 5.500 prefeitos, metade dos quais com orçamentos municipais estourados, a gastarem ilimitadamente. Os efeitos são esses que a gente vê no cotidiano da população – falta de empregos, mal atendimento hospitalar, educação deficiente. A imprensa, nunca neutra, contenta seus leitores, veiculando ou ironizando os entediantes debates improdutivos, esse espetáculo indigesto que o Congresso e o Judiciário proporciona ao país. A indiferença e a irresponsabilidade corrompem a essência e a natureza da brasilidade.

Acreditando-se já globalizados, os trabalhadores assumem a preguiça macunaímica, optando por paralisações prolongadas, que dilapidam as bases da economia, ao invés de formar uma grande frente de trabalho, como ocorreu nos EUA e na Rússia durante a guerra. Com o modelo de educação considerado um dos piores do mundo, insiste -se irresponsavelmente em que as escolas devem formar politiqueiros, e não empreendedores. Desfiguram-se assim o caráter competitivo, a imagem do País e as raízes identitárias do povo brasileiro. Sob a forma de novelas, continuamos a exportar a nossa própria miséria, como cultura.

Estamos diante de um País errante sem limites, transformado em terra de ninguém, com  instituições desfiguradas, privilegiando velhacos. Da conjuntura, emerge um brasileiro engasgado com a politicagem e os foros. Resignado, tolera comportamentos irresponsáveis e até criminosos. Gradualmente, o brasileiro vai perdendo a identidade e a autoestima. Daí a fuga dos capitais produtivos.

Nesse cenário, o Petrolão e a Lava Jato, coordenados por jovens, juízes e procuradores já surgidos na era digital, podem ser vistos como um divisor de águas, cuja virtude é prender todo mundo e desenraizar o que a História perplexa, mas omissa, preserva. Segundo minha editora Marli Gonçalves, “Logo viveremos só com as nossas telas”.

E, de acordo com Alessandro Candeas, em Hybris, inteligência artificial, “será a revanche do inconsciente”.

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Aylê-Salassié F. Quintão* – Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília.

 

 

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