Corrupção, mimos da burocracia, farra fiscal, atraso social. Não se muda nada disso sem reformas. Por Antonio Machado
Corrupção, mimos da burocracia, farra fiscal, atraso social. Não se muda nada disso sem reformas
Antonio Machado
Regalias, muita autonomia e estatismo criaram uma casta de intocáveis e uma economia movida a favores, com mediação de políticos. Enfim: um sistema viciado e sem mocinhos
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM CIDADE BIZZ, 27 de maio de 2017
O dedo na ferida
Apesar do forte apelo das imagens de vândalos pondo fogo e jogando pedras em ministérios em Brasília no dia dos protestos das centrais sindicais, de parlamentares que se dizem de esquerda tentando obter no berro decisões negadas pela condição minoritária no Congresso e no eleitorado e de delações a granel contra todos os partidos, tudo isso mais embaça que aclara as causas reais da decadência política e econômica do país. E escamoteia os seus responsáveis e os vilões.
O que vinha em crise em marcha lenta desde a Constituição de 1988 era a governança do Estado nacional. Chamada de “cidadã”, começa aí (e isso precisa ser amplamente explicado) um sistema de castas. Ela apartou do conjunto da sociedade a minoria empregada pelo Estado – uma autêntica elite que não se vê como tal, apesar dos privilégios e indulgências até nas punições (como juízes, cuja sanção máxima é a aposentadoria compulsória, mantidos todos os direitos da ativa).
Essa casta desfruta de estabilidade no emprego, condição que até o PT pretendia revogar antes da primeira eleição de Lula, recuperando o sentido original do benefício – proteger de pressões externas os membros das autênticas carreiras de Estado (juiz, promotor, fiscal de rendas, delegado de polícia). Aos demais, aplicar-se-ia a CLT.
A estabilidade deveria ser o único diferencial. Mas fizeram pior: ignoraram a capacidade contributiva da sociedade e de a burocracia ampliar seus benefícios, alastrando a “doença de custo”, expressão popularizada pelo influente economista americano William Baumol. A carga tributária recorde no mundo emergente, o déficit pegajoso e a dívida pública crescente (causa dos juros anormais) surgem assim.
Servidores têm garantia de reposição anual da inflação (o que pode não ser recorrente, mas sempre acontece) e se aposentam pelo último salário (e com gratificações eventuais também incorporadas, algumas chegando a R$ 180 mil no Judiciário).
Acha pouco? A aposentadoria dessa elite é reajustada tal e qual o que a sua categoria receba na ativa (e o Congresso acaba de aprovar uma lei que concede bônus de desempenho a auditores da Receita extensível aos inativos!).
Tal sistema rege as relações empregatícias na União, nos estados e nos municípios, de modo que a maioria (e não só nos casos notórios do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul) se encontra em insolvência avançada devido à previdência e à folha de pessoal.
Quando o PT era moderno
Lula se elegeu em 2002 com os quadros mais cabeça do PT da época, como José Genoíno e Aloizio Mercadante, se opondo aos privilégios do setor público. Discutia-se até se a CUT deveria abrir-se para os sindicatos do funcionalismo.
Ao se fragilizar no mensalão, Lula foi buscar a reeleição já sem o ideário reformista (liderado pelo então ministro Antonio Palocci) e entregou-se às corporações estatais, ao lado mais retrógrado do empresariado e aos partidos fisiológicos.
Tratava-se de um lance de risco, que julgava poder controlar com a renda potencial do pré-sal recém-comprovado e com seu carisma. Não contava com a inépcia amazônica da sucessora e com a sede de poder e de enriquecer de aliados históricos e os de ocasião.
Se tivesse a intuição que lhe atribuem, Lula teria ouvido Palocci (que depois também se perdeu) e sido prudente. A modernidade da esquerda se foi ali.
As raízes do desgoverno
Não foi o regime iníquo do funcionalismo que escavou o buraco das contas públicas, minando os resultados da economia. Ele o agravou. As causas do desgoverno terminal são muito mais complexas e sutis.
Ainda que as disfunções da Constituição tenham sido aparadas por meio de barganhas já na fase final (por exemplo, ao mitigar o viés estatizante da ordem econômica em troca de menos liberalismo em questões de comportamento), muita coisa ficou – como as cláusulas que facilitaram o varejo partidário, o dirigismo estatal sobre o setor privado e a autonomia não só operacional ao Judiciário e ao Ministério Público à custa do poder parlamentar, isto é, do Estado.
A República dos rábulas
A chamada República dos rábulas, tal como o esgotamento fiscal do país, é a colheita do que se plantou em 1988. O governo de Michel Temer se comprometeu a mudar o que inviabiliza o custeio do Estado (daí a PEC do Teto), interdita o desenvolvimento (como a legislação trabalhista defasada) e contrata a falência nacional sem reformas (leia-se: previdência). Um pouco do que se assiste são as reações a elas, não se rejeitando nem a expiação dos podres presidenciais.
Estranho é que tendo sido parte da coalizão que fechou os olhos ao assalto aos dinheiros públicos não tivesse nada contra si. Esperar o que de um sistema eleitoral em que um deputado se elege ao custo médio de R$ 7,5 milhões?
Mistério… Tal como um corrupto confesso, que recebeu ao menos R$ 12 bilhões de fundos públicos nos 13 anos do petismo, ganhar imunidade por devassar o lado sombrio do poder. Foi para o exílio luxuoso em Nova York, legando um quadro de ruína. Não se purga isso ai só caçando corrupto. Sem reformas, nada muda.
Capone cresceu com a lei
Em tempos confusos é preciso perceber as sutilezas. Um cenário de corrupção irrestrita no mundo político, por exemplo, exige mais que repressão. Não foi a prisão de Capone, mas o fim da Lei Seca, que baniu nos EUA dos anos 1930 um dos mais rentáveis negócios ilegais.
Por analogia, com todo o respeito, pense-se no sistema que provê o repasse de dinheiro público a partidos mesmo sem um único vereador.
Um desses partidos recebeu R$ 1,2 milhão em 2016. A lei está cheia de coisas assim – meios legais para fazer dinheiro sem suar nem se arriscar.
Tipo aposentadoria especial, crédito farto e juro amigo (a JBS dos irmãos Wesley e Joesley faz 70% da receita no exterior graças a tal expediente), não pagar tributo etc. Se há macete, há quem o regule, premiando ou punindo ao gosto do plantonista do poder. As reformas visam tais anomalias. Que continuem. Ou tudo ficará igual.
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ANTONIO MACHADO – É JORNALISTA. Colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas, editor do Cidade Biz (www.cidadebiz.com.br)