Muito além do vizinho

Pode parecer estranho
aos olhos de alguns, mas tanto o governo americano quanto o FMI não ficaram
particularmente satisfeitos com a decisão tomada pelas cortes americanas no que
diz respeito à dívida argentina. Sem querer entrar no seu mérito jurídico (mesmo
porque me falta qualificação para isto), acredito ser importante explicar o
motivo do descontentamento daqueles que são tidos como defensores do
imperialismo e, por extensão, dos direitos dos credores.
Tratemos de esquecer
que o problema diz respeito à Argentina, ou a qualquer país pelo qual possamos
nutrir simpatia ou antipatia referente à sua política econômica, e tentemos
pensar em termos genéricos.
Quando uma empresa não
consegue mais pagar seus credores vai à falência: deixa de existir, seus ativos
são liquidados e o resultado distribuído entre os credores, em geral seguindo
alguma ordem de preferência estabelecida na legislação local.
Um país soberano, por
outro lado, não costuma sumir, nem pode ter seus ativos liquidados para
pagamento de suas dívidas, por exemplo, entregando um pedaço de seu território,
ou mesmo o direito às suas riquezas naturais. Países não vão à falência; chegam,
no máximo, mais próximos ao que seria uma concordata, isto é, negociam com seus
credores o quanto será possível pagar da dívida original e, a partir daí,
recomeçam a vida, normalmente em condições piores de acesso a crédito.
Ocorre que, ao
contrário do caso de uma empresa concordatária, não há uma corte que garanta
igualdade de tratamento a credores no caso de países soberanos. Alguns podem
aceitar os termos propostos pelo devedor, mas outros, insatisfeitos, podem
optar por se manter à margem do processo, problema que agora atormenta a
Argentina, mas que já nos afligiu em outros momentos da nossa história.
Da mesma forma, quando
uma empresa pede concordata, a corte pode determinar aos credores que não a executem,
isto é, mantenham linhas de crédito (mantida, é claro, a condição que novos
créditos não sejam sujeitos à renegociaçã0); no caso soberano isto não é
factível e cada um trata de sair tão rápido quando pode, o que costuma agravar
a intensidade das crises.
Para lidar com estes
problemas foi proposta, há pouco mais de 10 anos, a criação do equivalente a
uma corte internacional de falências (SDRM – Mecanismo de Reestruturação de
Dívidas Soberanas na sigla em inglês), mas a ideia não vingou.
A alternativa adotada
foi a inclusão de Cláusulas de Ação Coletiva nas novas dívidas. Estas permitem
que credores que representem uma maioria qualificada (por exemplo, 75% do valor
da dívida) possam alterar alguns termos do contrato, obrigando os demais a
segui-los. Isto não resolve todos os problemas acima, mas atenua o incentivo a
se tornar um credor recalcitrante.
A decisão das cortes
americanas atua no sentido oposto. Mérito jurídico à parte, esta jurisprudência
cria incentivos para que credores se recusem a participar da renegociação, pois
passam a contemplar a possibilidade de receberem a totalidade da dívida, ao
invés de uma fração dela.
Em particular, no caso
de um título com emissão modesta, podem, inclusive, comprar (com desconto
expressivo) uma parcela suficientemente alta dele para impedirem a formação da
maioria qualificada e assim bloquearem alterações nos termos do contrato. Isto
aumenta o risco da repetição do problema agora observado e torna o mercado
internacional de capitais mais instável.

É esta a raiz do
descontentamento dos EUA e FMI. A nova jurisprudência pode tornar muito mais
difícil o processo de renegociação de dívida, agravando a instabilidade
financeira. Não nutro qualquer simpatia pela política econômica argentina, mas é
fundamental perceber que a decisão das cortes traz implicações que vão muito
além do vizinho. Tornou-se ainda mais urgente achar formas de lidar com
reestruturação de dívidas soberanas.
(Publicado 2/Jul/2014)

31 thoughts on “Muito além do vizinho

  1. Então você é a favor de mudar as regras do jogo depois que você perdeu?

    A Argentina se endividou em "X" e deve pagar "X", ponto final. As consequências são culpa de quem CRIOU o problema, não da corte que julgou o óbvio e ululante corretamente.

  2. Na cidade em que mora havia uma empresa, e sempre que precisava de emprestimo apelava que se nao tivesse o credito precisaria demitir centenas de funcionarios. Isto deve ser comumm no Brasil. Seré que este modelo consegue fazer o país ter crescimento sustentavel? Crecer dando calote?

  3. Alex

    Acompanho faz tempo seu blog e me divirto com suas respostas ácidas. Mas acho que dessa vez eles tem razão. Eu sei que o seu texto não diz que o calote está correto, mas vocÊ não concorda que o único errado a história é a própria Argentina, que se endividou por livre e espontânea vontade e não conseguiu pagar?

  4. Tentarei me alimentar com um peso maior de peixes. Só que aprendizado tambem necessita de que alguem ajude. Minha pergunta, para que eu nao cometa erro de interpretacao:
    O FMI, o governo americano, voce ou qualquer outro governo ou pessoa, defende que é melhor nao dar o direito que o credor tem que receber, aceitando o que o devedor quer pagar?

  5. "Eu sei que o seu texto não diz que o calote está correto, mas vocÊ não concorda que o único errado a história é a própria Argentina, que se endividou por livre e espontânea vontade e não conseguiu pagar?"

    F… a Argentina. Não é o assunto do artigo (não por acaso o título é p que é).

    O ponto é que, às vezes, há calotes. Fato da vida. Não gosto, não acho "correto", mas ocorrem, assim como ocorrem com empresas.

    No caso destas últimas desenvolvemos alguns mecanismos mais (e outros menos) eficientes de lidar com elas. Uma boa lei de falências ajuda (e muito), em particular a recuperação de ativos ainda em tese produtivos.

    Não temos nada semelhante globalmente, porque quando há países soberanos envolvidos, não há como garantir que estes mecanismos funcionem. Se houvesse, provavelmente os incentivos a emprestar para um país complicado seriam menores, assim como as crises, mas não os há e este é um bom motivo para pensar em como preencher esta lacuna.

    Agora acredito que até os semi-alfabetizados vão entender…

  6. Grato Alexandre, comecei a entender.
    Geralmente é a irresponsabilidade do governo que provoca o problema.Existe algum mecanismo que o trabalhador e pagador de impostos nao serao os mais afetados?

  7. Bom chegamos a um consenso: f… a Argentina haha

    Mas continuando no tema. Sou formado primeiramente em direito, e lá aprendemos que o estado toma para si o monopólio do uso da violência com a pretensão de resolver as litigâncias sociais (tanto em âmbito civil quanto criminal). Para isso, utiliza-se de seus instrumentos para garantir que A pague a B o que deve (execução da dívida, por exemplo). Ou seja, impõe de cima para baixo.

    Agora, quando o assunto são entes soberanos, não consigo enxergar uma possibilidade, nem mesmo uma luz no fim do túnel. Em tempos antigos, como em Roma, os senadores (ou imperadores) enviavam suas legiões para garantir que o combinado seria honrado (e as vezes para garantir além disso rs). Mas mesmo nisso fica claro uma relação de soberania de um estado sobre outro. Acho que não tem como forçar um Estado soberano a honrar seus compromissos, ainda mais sabendo que na hora do vamos ver eles preferem se aliar aos demais estados do que aos credores (uma vez que podem ser os próximos da lista).

    É uma situação semelhante a que existe nos precatórios. Na prática, os estados e municípios (ou a maioria deles) são caloteiros.

  8. "E o calote que o FED deu?Não conta?Foi o maior calote da historia,imprimir 4 trilhões sem lastro."

    Isso: o maior calote da história e o maior rally de bônus, que nunca se valorizaram tanto. Putz, cada cretino que me aparece por aqui…

  9. A melhor solução, seria proibir o governo de emitir títulos públicos,acabando com o risco de calote.

    Outro ponto seria ter um governo 100% superavitário.

  10. Olá de volta. Sou o anônimo que deu o first blood aí em cima e foi meu primeiro comentário no seu site. Não queria causar essa discussão toda, mas vou reafirmar meu ponto aqui. Você disse no seu texto:

    "…Estas Cláusulas de Ação Coletiva permitem que credores que representem uma maioria qualificada (por exemplo, 75% do valor da dívida) possam alterar alguns termos do contrato"

    Foi daí que tirei a pergunta: "Então tudo bem mudar as regras do jogo depois que você perdeu".

    Insisto. Você realmente acha isso válido? Esse negócio existe há 10 anos e não vingou… me parece um excelente indício que não é para funcionar mesmo.

    Você segue: "esta jurisprudência cria incentivos para que credores se recusem a participar da renegociação, pois passam a contemplar a possibilidade de receberem a totalidade da dívida, ao invés de uma fração dela. "

    Mas isso é OBVIO! Eu mesmo não emprestaria um centavo para alguém sabendo que outras pessoas que fizeram o mesmo poderão sabotar o contrato que firmei com esse alguém. Pouco importa se o alguém é o padeiro da esquina ou o governo da argentina ou o eike batista.

    Enfim, meu ponto é: Ainda bem que não temos isso funcionando! Trata-se de legalizar a sabotagem. Continuando seu texto:

    "… A nova jurisprudência pode tornar muito mais difícil o processo de renegociação de dívida, agravando a instabilidade financeira."

    Foi daí que finalizei meu comentário: Quem causou a crise foi o DEVEDOR. A corte não criou dificuldade nenhuma. A dificuldade foi criada por quem tomou emprestado e não pagou. Se criarmos um sistema que pune o credor, não haverá mais ninguém disposto a financiar os governos.

    Por fim, já que eu comi bastante peixe desde então, se houver algo errado no meu raciocínio, por favor me corrija com referências, e não com um cardápio rico em fósforo e ômega 3.

    Obrigado.

  11. "Foi daí que tirei a pergunta: 'Então tudo bem mudar as regras do jogo depois que você perdeu'."

    Insisto na dieta rica em fósforo e ômega 3: as CACs fazem parte do contrato, i.e., quem comprou sabe (ou deveria saber) que, em certas circunstâncias previstas pelo contrato os termos do próprio contrato podem ser alterados. Em outras palavras, as regras preveem mudanças de regras.

    " Esse negócio existe há 10 anos e não vingou…"

    Não? Faz tempo que não mexo mais com isto, mas desconfio que não há emissão nos últimos 10 anos que não contenha CAC. Se não são todas, aposta na imensa maioria.

    "Eu mesmo não emprestaria um centavo para alguém sabendo que outras pessoas que fizeram o mesmo poderão sabotar o contrato que firmei com esse alguém."

    Seu direito, mas noto que não parece haver diferença significativa de preços entre papéis com e sem CACs (pelo menos não havia quando eu estava envolvido).

  12. Ué, o país que assuma o contrato e deflagre calote, que manche o score e pague taxa pica nas próximas emissões. Quem comprou sabia onde estava se metendo; não era risco Tbond, nem a taxa; laissez passer!

  13. Ao @14 de julho de 2014 15:20

    Mas poxa, é esse meu ponto. A regra é essa e ponto final. O que NÃO é justo é um punhado de outros credores se unirem para mudar uma regra JÁ existente (que por sinal é essa que você colocou) e alterar os ganhos de quem NÃO quis mudar as regras.

    Mas enfim, já entendi o ponto por aqui. Ficam 2 lições para mim:

    * Comer mais peixe e tentar fazer um comentário inteligente na próxima vez

    * Nunca comprar títulos da Argentina.

  14. " O que NÃO é justo é um punhado de outros credores se unirem para mudar uma regra JÁ existente (que por sinal é essa que você colocou) e alterar os ganhos de quem NÃO quis mudar as regras. "

    Mas, ao comprar o papel com CAC o credor já aceitou o risco de mudança de regras…

    Quanto à segunda lição, 100%

  15. Acho que entendi o que o Alex quer dizer…..os aplicadores do direito no alto de sua arrogância e sapiência teimam em não ter bom senso ao aplicar a lei…."mundo do que deveria ser" x " realidade" ……ou seja preferem impor o seu entendimento em detrimento da realidade social e econômica…no final ruim pra todo mundo.

  16. Também não vou tão longe. Não acho que juízes possam decidir diferente do que a lei manda. A questão é definir um marco legal que permita lidar com problemas soberanos, assim como foi definido um marco que permite lidar com este problema no contexto corporativo (Lei de Falências).

  17. Alex,,unindo o meu comentario com o seu ,acho que estamos chegando a um denominador comum……eu falei em aplicar a lei com bom senso….voce assevera que não se pode decidir diferente da lei e a necessidade de criação de um marco legal que resolva melhor estes problemas soberanos…..se bem , que ao comprar a divida o credor já está ciente da clausula que permite uma mudança de regras, por mais que se discuta a legalidade dessa clausula … por isso ressalto que o julgador deve ter bom senso interpretativo para fins de aplicação da lei, sem que isso configure um "atropelo legal" como vc mesmo asseverou….valeu !

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