Nathan, o sábio, e a tolerância que nos torna livres e inteligentes. Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
EMBARGOS CULTURAIS
Nathan, o sábio, e a tolerância que nos torna livres e inteligentes
Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
…o multiculturalismo que também resulta de processos migratórios desafia o direito, o que óbvio, exigindo a construção de arranjos institucionais que acomodem o universalismo arrogante do ocidente com o relativismo de resistência, o que não é tão óbvio…
Publicado originalmente no Conjur, edição de 4 de setembro de 2016
As discordâncias que vicejam no mundo exigem o reencontro com autores e pensadores que insistiram que a tolerância é o supremo bem que nos qualifica como seres humanos livres e inteligentes. Refiro-me a Gotthold E. Lessing (1729-1781), expoente do iluminismo alemão, que nos deixou um libelo cativante em prol da tolerância. Trata-se a peça teatral “Nathan, o Sábio”, ambientada no século XII, ao longo da Terceira Cruzada (1189-1192), a Cruzada dos Reis, da qual participara o legendário Ricardo Coração de Leão. A própria intolerância dos tempos de Lessing retardou a estreia da peça, que foi levada a público somente em 1779, algum tempo depois de concluída. Lessing teria sido o primeiro autor alemão a viver exclusivamente do que escrevia[1].
A peça se desdobra em Jerusalém, sempre ferozmente disputada; a posse do Santo Sepulcro opunha cristãos e muçulmanos. Nathan, um judeu (inspirado talvez em Moses Mendelsohn), o sultão Saladino, muçulmano, e um cavaleiro templário, cristão, dialogavam e convergiram na compreensão de que o judaísmo, o islamismo e o cristianismo suscitavam possível diálogo, na medida em que origem comum não poderia justificar o ódio que se resolvia nos campos de batalha[2]. De acordo com um autor português, a propósito dessa obra de Lessing, “Pondo em diálogo três representantes da religião do Livro (…) o pensador alemão sublinhou a existência de um fundo comum: a circunstância de todos eles perfilharem religiões de amor filialmente transmitidas”[3]. O conflito, no entanto, persiste, de algum modo, e de alguma forma, com disfarces e nuances, que desafiam nossa compreensão. A compreensão do outro, parece-me, de fato, é uma questão recorrente[4]. Fácil quando exigimos que nos compreendam. Difícil quando nos exigem a compreensão dos outros.
Exemplifico o argumento com uma ordem baixada em agosto de 2016, pelo prefeito de Villeneuve-Loubet, na Costa-Azul-Riviera Francesa[5]. O prefeito teria proibido, nas praias de comuna, o uso de trajes de banho que manifestassem de maneira ostensiva qualquer filiação religiosa[6]. Mulheres muçulmanas que frequentam a região combinam trajes de banho com a burca, de onde o neologismo “burkini”. Algumas associações de defesa de direitos humanos requereram a suspensão da ordem.
Os demandantes requereram revisão da regra municipal junto ao Tribunal Administrativo de Nice, que indeferiu o pedido. Em seguida, a questão foi levada ao Conselho de Estado, em Paris, postulando-se a anulação da ordem, o reconhecimento do pedido feito em primeira instância administrativa e a condenação do Estado em multa pecuniária. Decidiu-se que o prefeito, de fato, detém o poder de polícia no município. Porém, deveria acomodar esse poder com sua também missão de manter a ordem na comuna com respeito às liberdades garantidas pela lei. As medidas que implementa devem ser adaptadas, necessárias e proporcionais às necessidades da ordem pública, no caso, garantindo o acesso, a segurança dos banhistas, a higiene e a decência; não poderia o prefeito avançar em com outras considerações. O prefeito teria de algum modo excedido a seus poderes de polícia, pelo que o Conselho cassou sua ordem.
Várias questões emergem desse problema. Desconheço razões de ordem prática que orientaram a confecção da ordem, e que também exigem que seja levada a sério. Os tristes episódios de 14 de julho último ocorridos em Nice fixam o pano de fundo da discussão. Alguns ingênuos hermeneutas (imaginários) daqui estariam preocupados como o fato de que a matéria foi discutida e julgada administrativamente; não se apelou ao Judiciário.
Recomendo a leitura de Aléxis de Tocqueville, para compreensão do modelo de jurisdição administrativa francesa, e seus porquês[7]. Alguns problematizarão o tema da margem de apreciação, sufragado pelo Corte Europeia de Direitos Humanos, que tornou a Convenção um direito subsidiário, em favor do direito local, que deve ser prestigiado: não se poderia discutir essa decisão fora de seu contexto originário. Bem construída a decisão do Conselho de Estado, por seus fundamentos, que revelam visão complexa e esclarecedora, de um assunto infinitamente complexo e propício à incompreensão. A pá de cal vinda de Paris de algum modo restringiu mais uma fonte de problemas, em ambiente já absolutamente problemático.
Enfatizo que o multiculturalismo que também resulta de processos migratórios desafia o direito, o que óbvio, exigindo a construção de arranjos institucionais que acomodem o universalismo arrogante do ocidente com o relativismo de resistência, o que não é tão óbvio. Nathan, o sábio, em uma Jerusalém que queimava na guerra, propôs o entendimento, que somente se alcança quanto nos despojamos de nossos preconceitos marcados por idiossincrasias e percepções etnocêntricas do mundo.
[1] Cf. Watson, Peter, The German Genius, London: Simon and Schuster, 2010, p. 110.
[2] A fundamentação histórica das chamadas religiões reveladas pode também ser estudada em Armstrong, Karen, A History of God, New York: Balantine Books, 1994. E o dissenso entre as mesmas religiões, pela mesma autora, em Fields of Blood- Religion and History of Violence, London: Vintage Books, 2014.
[3] Catroga, Fernando, Entre Deuses e Césares- Secularização, Laicidade e Religião Civil, Coimbra: Almedina, 2010, p. 78.
[4] Nesse tema, especialmente quanto à percepção ocidental do oriente, indispensável a leitura de Edward Said, Orientalism, New York: Vintage Books, 1994.
[5] Os temas aqui foram colhidos na imprensa. A questão foi obtida junto ao sítio eletrônico do Conselho de Estado Francês.
[6] Segue a ordem, em tradução livre minha: “Em todas as praias dessa comuna, o acesso aos banhos está proibido, de 15 de junho a 15 de setembro (incluído), a toda pessoa que não se vista de forma correta, e que desrespeite os bons costumes e ao princípio da laicidade, com respeito às regras de higiene e de segurança dos banhos no mar, adaptados ao domínio público marítimo. O uso de roupas, durante o banho, com alguma conotação contrária aos princípios acima mencionados, está estritamente proibido nas praias da comuna”.
[7] Tocqueville, Alexis de, L’ancien régime et la révolution, Paris: Flammarion, 1988. Há excelente tradução para o português, editada pela Martins Fontes. Trata-se de livro central para compreensão da história do direito administrativo.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela UnB e pela Boston University. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).