…A contribuição do cristianismo para a cultura (mas não só) foi imensamente civilizadora, sem que nada disso negue eventuais barbaridades que essa religião incentivou , acobertou, possibilitou, mesmo que equivocadamente ou devido a interpretações despropositadas…
Post de Nelson Ascher, publicado em sua página pessoal no Facebook, 15 de novembro de 2015
Tampouco falta gente agora — especialistas de última hora em religião comparada– defecando regra em cima de nós, dizendo que o cristianismo é ou já foi muito pior, mais violento que o Islã, que a Bíblia judaica isso e aquilo, que o Novo Testamento aquilo e isso, que as Cruzadas e a Inquisição etc.
Saibam que o pessoal que sai dizendo essas coisas dessa maneira se divide em duas categorias: 1) os idiotas que são tão idiotas, que ignoram as dimensões de sua própria ignorância; e 2) os delinquentes, que apostam nas dimensões da ignorância alheia, delinquentes que chegam a um grau criminoso ou patológico de mentira e deformação histórica como o de um sujeito que li comentando algum artigo em algum de nossos ínfimos grandes jornais; ele dizia na cara dura que os muçulmanos foram os únicos que nunca escravizaram ninguém, especialmente não os negros africanos — justamente eles, que foram os primeiros a fazê-lo, que mais o fizeram e que, aqui e ali, continuam a fazê-lo.
A questão é: se meu currículo anticlerical fosse “weaponizado”, ou seja, usado como arma, ele sozinho, atirado de “drones”, serviria para esmagar todos os militantes do ISIS no Iraque e Síria. Não há muita gente por aí que escreveu tanto e tão duramente contra a religião em geral, contra o cristianismo em particular e mais particularmente ainda contra o catolicismo do que este seu humilde servidor. Mas eu tenho de reconhecer que parte substancial do que há de melhor no Ocidente e na cultura ocidental, que é a melhor cultura que a humanidade desenvolveu até hoje, vem diretamente do cristianismo e está umbilicalmente ligado a ele, especialmente ao catolicismo.
Nossas artes plásticas? Desde seu nascimento até bem depois do barroco, ela ou servia a religião ou estava em diálogo –mesmo que às vezes crítico– com ela, e o que ela tinha e tem de cristão é muito mais profundo do que aquilo que chamamos de iconografia. O mesmo vale, obviamente, para escultura e outras artes visuais e, mais ainda, para nosso magnífico legado arquitetônico, legado cujos maiores tesouros séculos a fio são igrejas, catedrais, basílicas etc.
…finalmente, só pediria um favorzinho a eles: quando eles não gostam de alguma coisa, será que daria para explodi-la não com a nossa dinamite, não com os explosivos que nossa civilização, nossa ciência e nosso raciocínio e intelecto inventaram, mas com a dinamite deles, com a pólvora deles? Será que eles poderiam pelo menos matar as pessoas, inclusive uns aos outros, com a Kalashnikov ou Winchester ou Uzi inventada, criada, desenvolvida e aperfeiçoada por eles?…
A música letrada ocidental, ou seja A Música pura e simplesmente? Nasceu na igreja e ainda no século XIX mal tinha saído de dentro dela. E na segunda metade do século XX, especialmente nos países comunistas, ela regressou a essas suas raízes, e viu isso (o ouviu isso) como uma autêntica forma de libertação. A poesia, a prosa e tantas outras coisas e, last but not least, a filosofia. A contribuição do cristianismo para a cultura (mas não só) foi imensamente civilizadora, sem que nada disso negue eventuais barbaridades que essa religião incentivou , acobertou, possibilitou, mesmo que equivocadamente ou devido a interpretações despropositadas.
Agora, claro, estou totalmente aberto para saber mais da cultura que se enraíza no Islã e/ou que nasce, brota diretamente dele. Gostaria de comparar nosso Fra Angélico, Boticelli, Caravaggio, Grünewald, Michelângelo, Bellini com o deles, nosso Machaut, Palestrina, Monteverdi, Bach, Handel, Pergolesi com o deles, nosso Dante, Tasso, nosso hinário latino, nosso Book of Common Prayer com o deles, nossa Chartres, San Miniato al Monte, Duomo de Florença, San Marco, Canterbury Cathedral com os deles, toda nossa linha de argumentação que vai de Santo Agostinho a Montaigne e Descartes com a deles.
E, finalmente, só pediria um favorzinho a eles: quando eles não gostam de alguma coisa, será que daria para explodi-la não com a nossa dinamite, não com os explosivos que nossa civilização, nossa ciência e nosso raciocínio e intelecto inventaram, mas com a dinamite deles, com a pólvora deles? Será que eles poderiam pelo menos matar as pessoas, inclusive uns aos outros, com a Kalashnikov ou Winchester ou Uzi inventada, criada, desenvolvida e aperfeiçoada por eles?
Será que, pelo menos para fins de destruição pura e simples, eles poderiam se mostrar um pouquinho menos derivativos, um pouquinho mais criativos, um pouquinho mais inventivos?
Talvez aí eles tivessem menos problemas psíquicos, menos complexos de inferioridade, menos inveja peniana, menos problemas de autoestima.
Nelson Ascher – é poeta, editor, tradutor de poesia, crítico literário e cinematográfico, criador e diretor por onze anos da Revista USP, da Universidade de São Paulo