Até quando? Por Adriana Carranca

Até quando?

Por Adriana Carranca

‘Eu chorava enquanto estava filmando’, disse o fotógrafo que resumiu a apavorante tragédia da Síria nas imagens do menino Homran

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO, 21 DE AGOSTO DE 2016

Esta é uma pergunta recorrente para a qual nem mesmo os que vivem de perto a guerra na Síria têm respostas. “Quando a comunidade internacional vai acreditar que o regime de Assad e os jatos russos matam crianças sírias todos os dias?”, pergunta Mahmoud Raslan, o fotógrafo responsável pela imagem do menino sírio com o rosto e o corpo cobertos por sangue, estilhaços e poeira, que percorreu o mundo esta semana. Raslan é também de Aleppo, a cidade partida em territórios inimigos e destruída pela guerra. “Eu chorava enquanto estava filmando”, ele relatou, em conversa com K.S., jornalista e escritor sírio refugiado na Suécia desde 2014.

A imagem foi registrada dentro de uma ambulância, após Omran Daqneesh ser resgatado dos escombros de sua casa, no bairro de Al Qatergui, atingido por sucessivos bombardeios que deixaram dezenas de mortos na noite de quarta-feira. Na cena, o menino está sentado imóvel, ereto, os pés pequenos no ar, longe do alcance do chão, o olhar ao mesmo tempo de ansiedade e resignação — ele podia estar sentado na mesma posição em um banco escolar, no primeiro dia de aula, o que torna a imagem ainda mais impactante. Mas está coberto por fragmentos de uma explosão.

… Esse roteiro de horror envolve três personagens negligenciados: crianças, refugiados e jovens encurralados pelos conflitos, que se arriscam para registrar os horrores da guerra e, assim, comover a comunidade internacional, “distante e inútil”.

Do refúgio na Suécia, K.S. viu a imagem em seu aparelho de celular quando se preparava para dormir. “Seus olhos me diziam que não era minha culpa. Mas eu me senti envergonhado ao deitar em minha cama quente na Europa, onde encontrei santuário, por não poder limpar seu rosto ou abraçá-lo”, escreveu na “New Statesman”. “Era como a comunidade internacional: preocupado e triste, mas distante e inútil.”

K.S. conectou-se à internet e procurou por Raslan. O fotógrafo sírio contou-lhe que os aviões bombardearem Al Qatergui por volta de 7h15m. Raslan, que coordena o Centro de Mídia Nour, um coletivo de jovens e ativistas antigoverno de Aleppo, seguiu em velocidade para a área. “Um carro quase colidiu com o meu e quebrou minhas costelas”, ele escreveu, terminando a frase com o emoji de um sorriso. Após algum silêncio, adicionou: “Eu chorava enquanto estava filmando, especialmente porque me tornei pai de uma menina há apenas sete dias.”

Esse roteiro de horror envolve três personagens negligenciados: crianças, refugiados e jovens encurralados pelos conflitos, que se arriscam para registrar os horrores da guerra e, assim, comover a comunidade internacional, “distante e inútil”.

Até quando?

Flagrado na imagem que percorreu o mundo, Omran estava entre 12 crianças que chegaram à emergência vítimas do mesmo bombardeio — ataques similares, indiscriminados e contra áreas civis atingiram Aleppo a cada 17 horas, em média, nas últimas duas semanas, com ao menos 327 mortos, um terço deles mulheres e crianças.

K.S., que usa apenas as iniciais porque sua família continua na Síria e ele teme represálias do governo, vive agora a angústia de assistir a tragédia à distância — como a comunidade internacional, que há cinco anos assiste a tudo sem encontrar solução. Uma das hashtags que viralizaram nas redes sociais esta semana, junto com a foto de Omran diz #wecantsaywedidntknow (não podemos dizer que não sabíamos).

E nós sabemos sobre o que acontece na Síria porque jovens sírios estão correndo riscos para registrar as imagens que assistimos do conforto de nossas casas. Antes dos conflitos, Raslan trabalhava em Aleppo como padeiro. Refugiar-se exige recursos para pagar traficantes de pessoas e outros exploradores do sofrimento alheio, recursos que muitos sírios não têm. Sem trabalho, ele passou a fotografar mortos para viver.

Puxado pelos números na Síria, 2016 já é um dos anos mais violentos para jornalistas. A morte de correspondentes estrangeiros costuma ganhar repercussão mundial, mas 89% dos jornalistas mortos são locais. Jovens sem a opção de deixar o país, ao mesmo tempo testemunhas e vítimas da guerra.

Quando a imagem de Omran chegou às telas de computador nos jornais do Ocidente, como a de Aylan, o menino sírio morto em um naufrágio, editores e repórteres tentavam buscar mais informações sobre o menino e sua família, mas já havia muitos outros Omrans vítimas de novos bombardeios, como houve muitos outros Aylans, registrados em imagens de mais um dia comum para os sírios.

Aos líderes de todo o mundo que se reunirão no próximo mês para mais uma Assembleia Geral da ONU, é preciso exigir que respondam: até quando?

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Adriana Carranca é jornalista. Escreve principalmente sobre conflitos, tolerância religiosa e direitos humanos, com olhar especial sobre a condição das mulheres. É colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo e repórter, além de colaborar com publicações internacionais. Vários livros publicados, entre eles, Malala, a menina que queria ir para a escola

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