A primeira morte de Hermilo. Por José Paulo Cavalcanti Filho
A PRIMEIRA MORTE DE HERMILO
Por José Paulo Cavalcanti Filho
“Somos todos mortais, com uma duração justa. Nunca maior ou menor. Alguns morrem logo que morrem, outros vivem um pouco na memória dos que os viram e amaram; outros ficam na memória da nação que os teve… Mas a todos cerca o abismo do tempo que por fim os some.”
Livro do desassossego (“Grandes trechos”), Bernardo Soares.
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…Hermilo falava com a franqueza própria dos que têm plena consciência do fim. Mas sem angústias aparentes. Então perguntei o que sentia, por dentro, alguém como ele que só acreditava nos homens e, ainda assim, com reticências…
Quarta feira, 26 de junho de 1976. Ligou Leda Alves. Leda de Hermilo Borba Filho, maior romancista de Pernambuco. Leda era de Hermilo, como Hermilo era de Leda. Propriedade privada. Não havia um sem o outro, logo seus amigos acabaram se acostumando com isso. E tudo levava a crer que seria um dia como tantos. Mas não foi. Ao menos para mim. “Dê as ordens, dona Ledinha”. “Hermilo quer falar com você”. Fiquei esperando. Chegou Hermilo. “Tudo bem?, José Paulo”. “Tudo bem, amigo”. “É o seguinte. O coração anda ruim e vou morrer numa semana. Preciso muito falar com você”. Pensei nas palavras que antes escreveu: “Lá vem o chamado Boca-Mole, com a sua angina e a sua tranquilidade de missão em andamento, curtido e carcomido mas puro, devastado na pele e nos ossos, mas poeta em suas atitudes e gestos e caminhos”. Era quase como estava. E prometi passar no apartamento dele à noite, quando voltasse para casa.
O endereço, na praia da Boa Viagem, conhecia bem. Rua dos Navegantes, Ed. Dom João VI, quase por trás do Posto 4. Leda me levou ao pequeno terraço do apartamento, em frente ao mar. Hermilo estava sentado numa cadeira com tiras de madeira pintadas de branco e ferragens escuras. Com um copo de uísque na mão, claro. E sem uma única luz acesa, no lugar. Apesar disso, o ambiente era iluminado pela intensa claridade que vinha de fora. Abracei-o fraternalmente. Estava em paz. Ou parecia estar. O assunto da urgência é que decidira fazer seu testamento. Indicou vontades, anotei num papel e guardei no bolso do paletó. À noite, redigi. E, no dia seguinte, ele assinou. Hoje, percebo que estava só esperando por isso.
Depois Leda me disse que, pouco antes de mim, esteve com ele Dom Marcelo Carvalheira. E que Hermilo confessou estar preparado “para olhar Deus cara a cara”, foram suas palavras. Dom Marcelo o abraçou, comovido. Talvez por ter tido a mesma sensação que Frei Betto teve, pouco antes daquele encontro. O de que lhe via pela última vez.
Volto ao presente e àquele terraço. Passamos a conversar. Hermilo falava com a franqueza própria dos que têm plena consciência do fim. Mas sem angústias aparentes. Então perguntei o que sentia, por dentro, alguém como ele que só acreditava nos homens e, ainda assim, com reticências. Queria saber se a sensação era a daquela tristeza própria das coisas findas; ou, ao contrário, de confiança pela permanência das suas ideias. Nesse momento, um transformador da rede elétrica explodiu na rua. Barulho enorme. O bairro todo escureceu. Ele disse, na hora: “Combateremos à sombra”. Sem compreender se o uso da frase do general Leônidas (nas Termópilas) era só um comentário sobre a ausência de luz, ou resposta à pergunta, continuei em silêncio. E Hermilo também não falou mais. “Boca não disse palavra”, como no verso de Drummond.
Ficamos então imóveis, acostumando a vista à escuridão. Até que, nas minhas retinas, vi o branco dos seus olhos. Depois, o branco dos dentes – prova de que estava rindo. Algo mesmo natural; que, triste, ninguém nunca o viu. Nem no fim. Talvez porque soubesse que o destino dos homens é sempre o mesmo – nascer, viver uma vida digna, deixar saudades. No mesmo momento em que outros nascem para viver outras vidas se possível dignas e também, se possível, deixar outras saudades. Quando outros mais nascem, e morrem, e a história se repete, sucessivamente, até o fim dos tempos.
Depois foram surgindo, em meio à escuridão, seus contornos – rosto, ombros, o resto do corpo, compondo uma silhueta que ia escapando bem devagar das sombras, do nada, em direção à vista. À vida. Imitando a trajetória dos personagens de romance, como aqueles que escreveu, que nascem primeiro na imaginação dos homens para depois sobreviver, majestosos, em uma outra dimensão. O velho amigo continuou calado. E eu confuso, com aquele silêncio próprio dos deuses serenos. Até que, afinal, compreendi. Para bom entendedor, meio silêncio basta. Era mesmo uma resposta. E que bela resposta.
Não falou mais. Eu também não. Era como se todas as coisas estivessem já ditas. Ou nada mais devêssemos dizer. Ou nenhuma palavra fosse mais necessária. Nem tivesse importância. Ficou apenas me olhando com um riso meio maroto no rosto. Como sempre. Como se nada tivesse acontecido. A cena era de paz. Muita paz. A paz de Hermilo se espalhando pelos quatro cantos do terraço e do vasto mundo.
“É tudo?, Hermilo”. “É tudo, amigo”. Então lhe dei um abraço, que era mais que um abraço. E disse “Adeus”. Ele respondeu “Adeus”. Um adeus diferente daquele que a gente dá quando se despede usualmente dos amigos. Um adeus, no dia a dia, com cara de até logo. De até mais ver. Agora não, era definitivo. Era mais amplo e mais do fundo. Era uma despedida de dois amigos que sabem nunca mais se verão. Um adeus sem metafísica. Então levantei da cadeira, dei um beijo na sua testa e fui embora.
P.S. Na quarta-feira seguinte, 3 de julho, Hermilo morreu. Como disse que morreria. O amigo era mesmo um homem de palavra. Saudades de Hermilo.
→NOTA. Em comemoração aos 40 anos da morte de Hermilo Borba Filho. Conto que estará no meu próximo livro (SO MENTE A VERDADE, Ed. Record, Rio).
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